No deve-haver dos debates do Orçamento do Estado, há um clássico intemporal. Que reza assim: os partidos do Governo garantem que o documento é à prova de bala, sacia os apetites mais básicos dos cidadãos e promove a justiça social e o crescimento; já a Oposição esconjura-o como se fosse a materialização económica do princípio do fim dos tempos, mesmo que, se estivesse no lugar daqueles que julga, carreasse algum do desdém em benefício de medidas similares. Mas por ser um clássico não o torna menos interessante.
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Aquilo a que, durante dois dias, assistimos no Parlamento foi à forma como, em matéria de contas públicas, é possível olhar para um mapa e enxergar dois mundos. O cunho ideológico empregue nestas encenações políticas é certamente culpado, mas o quarto e último Orçamento do Estado da chamada "geringonça" tem o condão de permitir aos portugueses viver não num, mas em dois países. Isto porque a lógica redistributiva que pautou o documento não pode ser dissociada dos vários alçapões que Mário Centeno foi colocando no caminho, à cabeça dos quais avulta a circunstância de no próximo ano a carga fiscal ser ainda mais violenta do que antes da chegada da troika. Para cada medida boa, pode encontrar-se uma outra nos antípodas da bondade.
Mas António Costa tem o país social pacificado, as tropas internas alinhadas, os parceiros de Esquerda "domados", a Oposição anestesiada e um presidente da República colaborante como nunca, especialista na arte de mitigar crises e dourar conquistas. O líder do Governo sai deste ciclo inédito com um capital político reforçado. Certamente grato aos que os alcandoraram a mestre de uma barca improvável, mas ciente de que a fama marítima só será verdadeiramente expansiva se, a partir do próximo ano, começar a libertar carga, rumo ao pôr do sol da maioria absoluta. Na margem, PCP e BE ficarão a dizer adeus com uma mão e a empurrar um bote para a água com a outra.
*DIRETOR-ADJUNTO