1 - Se a lógica vigorasse na política há muito que José Sócrates não passaria da caricata recordação de um chefe de Governo que nunca o deveria ter sido. Porém, nesses domínios, a racionalidade é rara e mesmo quando acontece, a espaços, possui tonalidades muito próprias. Sócrates não goza de características mínimas para chegar onde chegou. Não tem cultura e evidencia um pensamento reflexivo. Nunca trabalhou em nada que não fosse derivação directa da politiquice. Possui um currículo pessoal aterrador, prenhe de alçapões e de diegeses mal contadas. Tudo o que diz defender prefigura-se tautologicamente recitado, axiologicamente desvalorizado, instrumental, visando a sua própria sobrevivência na única actividade em que atingiu um plano primordial.
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Contudo, Sócrates dispõe de uma qualidade irrecusável: uma abundante dose de tenacidade e renitência face aos obstáculos que conflituam com os seus interesses. Sócrates é um lutador temível - não por ser especialmente dotado de perspicácia estratégica mas sim por desfrutar do mérito singular de saber aguentar estoicamente os momentos mais terríveis e conseguir uma quase-ressurreição mal a tempestade começa a amainar.
Um dos filmes da minha vida é de Martin Scorsese - "Raging Bull", que passou entre nós como "O touro enraivecido". Robert de Niro interpreta a figura de Jake LaMotta, campeão mundial de boxe na categoria de pesos-médios entre 1949 e 1951. LaMotta não era um grande boxeur: não dominava o jogo de pernas e de cintura nem sequer sabia esquivar-se dos socos dos adversários com destreza profissional mínima. No entanto, ascendeu no difícil mundo do boxe porque abrigava uma vontade indómita de se vencer a si mesmo, provando-o ao mundo inteiro. Nos combates com rivais bastante mais habilitados (como Sugar Ray Robinson), LaMotta sofria ininterruptamente socos capazes de derrubar qualquer lutador. Era um massacre horroroso e sanguinolento (que hoje não seria permitido) - mas não caía no tapete. Mantinha-se de pé, perante o espanto de todos, sempre a apanhar, cambaleando, e esperava que a fatiga atingisse o seu oponente. Depois, já perto do fim do combate, achava força para desferir golpes que derrubavam os opositores.
A analogia entre Sócrates e LaMotta é evidente (e em vários outros aspectos aqui não referidos). A pertinácia do líder socialista colmata as evidentes lacunas que perpassa tudo o que o rodeia, sobretudo a sua lamentável actuação governativa. E os momentos em que Sócrates parece mais fragilizado em resultado das contusões com que a realidade o atinge, paradoxalmente, são aqueles em que se pode desvendar como um adversário mais ameaçador. Aqueles que se focalizam na falta de qualidade política de Sócrates estão derrotados à partida. Subestimar alguém com tais atributos combativos constitui um erro fatal para quem aspirar a ser primeiro-ministro.
2 - No presente momento político, os maiores aliados da táctica socrática são os que desejam que o PSD hiberne até Fevereiro próximo. Marcelo Rebelo de Sousa converteu-se no porta-voz daqueles que requerem uma auto-anulação do principal partido da oposição até depois das presidenciais. Na sua inenarrável lição na Universidade de Verão dos social-democratas sustentou que a única estratégia válida para o PSD nos próximos seis meses seria facilitar a eleição de Cavaco Silva - leia-se, evitar uma crise política a todo o custo, admitir qualquer espécie de Orçamento, eventualmente abraçar mais acordos com o governo ainda que o seu conteúdo contenda com o ADN ideológico do PSD, enfim, desistir de ser alternativa ao PS, falar fininho e baixinho para que Cavaco Silva não tenha obstáculos na sua caminhada presidencial.
Esta atitude, caso fosse adoptada, teria duas consequências instantâneas: (i) o sumiço político do PSD durante um semestre, de que a actual liderança jamais se restabeleceria; (ii) um intervalo salvífico para Sócrates se recompor e poder ressurgir em paz e muito sossego.
Na história da democracia portuguesa, nunca um partido alcançou o poder reduzindo-se a uma mera estratégia presidencial. Pelo contrário.