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O patamar de indignidade e indiferença perante o sofrimento acompanhou a absoluta ilegalidade em nome de algo que só pode conformar-se ao mais puro eleitoralismo de quem vê uma contagem de votos, pela agenda da extrema-direita, sobrepor-se a uma contagem das vidas. A violência física e emocional contra famílias inteiras, sem cuidar de alternativas, trazendo a noite sem tecto como a verdadeira realidade para as horas a seguir, despejos sem pré-aviso consistente e atempado, todo um manual de práticas apelidadas de ilegais praticadas pelos responsáveis das câmaras municipais de Loures, Amadora e Odivelas, destruindo casas precárias que mais não eram do que abrigos sem uma alternativa de decência. Sem qualquer encaminhamento social ou habitacional, sem apoio, redobrando a miséria. Sem qualquer tipo de humanidade. Quase da noite para o dia. Do dia para a noite, foi um instante.
Num país que continua a olhar para um programa de emergência habitacional como uma miragem, governado por partidos fundadores da democracia prestes a derrubar formalmente o “não é não” (materialmente, já o está a fazer) através de alianças com o populismo do Chega em questões fundamentais e constitucionais, a emergência não é só de habitação, mas também sobre como viver assim. Coabitação não significa comprar agendas nem tão pouco um pacto de adesão ao “habituem-se”. Há um caminho agora conveniente que o PSD pode palmilhar, pensando em eleições autárquicas e na gestão de crises insufladas pela demagogia, para só mais tarde ter que pensar que aquele a que deu outrora a mão agora lhe morde os calcanhares. Esse caminho das pedras, sem volta, parece ser uma aposta em curso, tão mais grave quando se sabe que tem no PS de José Luís Carneiro o mais centrista parceiro de oposição de sempre. Talvez só Rui Rio soubesse aproveitar o momento para um bloco central.
A contundência verbal que tomou o Parlamento não augura um contexto que resista fisicamente a outros danos. Os sinais estão todos lá e o exemplo é dado, vindo de cima, pela absoluta negação do que deviam ser regras parlamentares elementares, senso comum da urbanidade. Talvez se exija o tal “princípio de acordo”, não o que José Luís Carneiro diz existir entre o Governo e o Chega, mas um que impeça o presidente da Assembleia da República de permitir que nomes de crianças sejam citados no hemiciclo, com consequências potencialmente desastrosas para a presença dessas crianças nas escolas e para as suas famílias. Mas o PS não pode jogar o jogo da “fanfarronice” de que acusa os outros. Devia, urgentemente, olhar para onde e para os meios onde os fanfarrões comunicam, e não imitar a forma como o fazem. Na comparação, o maior fanfarrão ganha sempre.