Do hibridismo tecnológico ao hibridismo antropológico. O duplo impacto de compressão-expansão
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Não há determinismo ou inevitabilidade tecnológica, mas haverá sempre uma influência fundamental do dispositivo no comportamento e, por seu intermédio, na antropologia sociocultural do seu tempo. Ora, o nosso tempo é dominado pelo hibridismo dos dispositivos tecnológicos e, portanto, pelo seu impacto no hibridismo antropológico dos comportamentos humanos e estes, no seu conjunto, pelo impacto que desencadeiam na esfera pública. Vejamos, mais de perto, estes impactos em cadeia.
Em primeiro lugar, o hibridismo dos dispositivos tecnológicos. Já passámos a internet da primeira fase, estamos agora a caminho da computação quântica. Já chegámos às redes 5G, a velocidade e a tecnologia dão as mãos para interconectar os objetos, tornar as máquinas inteligentes e os veículos autónomos, aprofundar a automação e a robotização de muitas atividades económicas, reorganizar os serviços com os assistentes inteligentes e a inteligência artificial e, de uma maneira geral, abordar a nossa condição pessoal, no trabalho, na saúde e no entretenimento, com muito mais realidade aumentada e virtual.
Em segundo lugar, o hibridismo antropológico dos comportamentos humanos e, desde logo, o duplo impacto da compressão espaço-tempo da nossa condição material e da explosão espaço-tempo da nossa condição imaterial. Este duplo impacto de contração e expansão da nossa condição é pleno de consequências e efeitos secundários e pode ser analisado de diversos ângulos de observação. De facto, estão em causa os mundos ou universos que informaram a nossa particular antropologia pessoal, do espaço familiar da primeira socialização ao espaço educacional da segunda socialização, do espaço laboral da terceira socialização até ao espaço sociocultural da quarta socialização, entre outras socializações particulares de que fomos os protagonistas principais.
Este duplo impacto de compressão-expansão da nossa condição está em plena laboração e é um verdadeiro laboratório de experimentação e investigação sociológica e antropológica. Na verdade, a interação entre o dispositivo e o comportamento tem duas faces, uma benigna e outra menos benigna. A face mais benigna é aquela que nos transposta até ao adicional de produtividade e à redução da semana de trabalho, ao adicional de tempo disponível para estar com a família e os amigos, ao adicional de
liberdade criativa para o desenvolvimento pessoal, ao adicional de ubiquidade e mobilidade para gozar os prazeres da aventura e do turismo. Mas há uma face menos benigna que tem a ver com as doses de adição digital e tecnológica que decidimos tomar em cada momento e que nos transportam até à construção de uma personalidade múltipla que frequenta os ambientes simulados, que pratica a topoligamia dos lugares, que usa as interfaces cérebro-computacionais da realidade aumentada e virtual, e que se organiza em redor de heterónimos-avatares, com todas as consequências que se podem imaginar no que diz respeito à corrosão do carácter e saúde mental.
Em terceiro lugar, este duplo impacto dos hibridismos tem um efeito externo muito significativo sobre a saúde geral da esfera pública. Senão, vejamos.
- O ponto de partida são os nossos dados pessoais, a sua traçabilidade e rastreabilidade, muitas vezes pondo em causa a nossa privacidade e segurança pessoais;
- O modelo de extração dominante desses dados apresenta duas faces, gratuito a montante e pago a jusante, o chamado modelo biface explorado pelas grandes tecnológicas;
- Os dados recolhidos são tratados no reino calculatório dos algoritmos, ou seja, somos coisificados e editados pela produção algorítmica;
- A produção algorítmica assim obtida e normalizada ignora a mediação e representação protagonizada pelas instituições de intermediação mais convencionais;
- A desintermediação e desinstitucionalização protagonizada pela sociedade algorítmica põe termo à comunicação simbólica do alfabeto, agora substituída pela linguagem binária;
- O empobrecimento da comunicação simbólica favorece o discurso demagógico e populista e o crescimento do narcisismo digital;
- No novo contexto, as normas das instituições dão lugar progressivamente às prescrições das máquinas e dos assistentes inteligentes;
- A adição digital, a bolha das redes sociais, e a alucinação provocada pelo hipertexto, geram um cidadão aditivado, muito condicionado e facilmente manipulável;
- Onde há sensores há censores, corremos o risco de ser os idiotas úteis de regimes com tendências populistas e autocráticos.
Nota Final
No ambiente acabado de descrever tudo está em mudança. Está em causa a natureza do ciclo de vida de cada um de nós e as suas várias fases de socialização. Quanto ao hibridismo destas transições, talvez a conexão mais complexa seja mesmo a interação entre o homem e o dispositivo nos seus aspetos mais intrusivos, invasivos e imersivos que podem estender-se desde uma simples interface cérebro-computacional de realidade aumentada e virtual até um ambiente de simulação imersiva onde passeiam os nossos heterónimos avatares ou, ainda, a um ser transumano ou pós-humano editado e manipulado geneticamente. De um lado, um dispositivo meramente instrumental e subordinado à vontade do seu utilizador, de outro, um dispositivo que adquire uma autonomia progressiva graças à inteligência artificial e que, por essa via, disputa, cada vez mais, a autonomia e as competências humanas do seu utilizador.
É aqui que nos encontramos. Neste imaginário social, o grande mito da convergência tecnológica parece disposto a provar que o ser humano é pura transição, uma máquina neuronal gigantesca onde o processo prevalece sobre a forma, do ser natural ao ser melhorado e do ser biónico ao ser pós-humano. Neste contexto de convergência tecnológica estaríamos disponíveis para alienar a nossa inteligência racional em dispositivos exteriores e a nossa inteligência emocional em redes sociais devidamente programadas e acondicionadas?
E os novos direitos humanos na era digital, quem traça os limites e onde? O direito a permanecer um humano não-aumentado, simplesmente, ou o direito a permanecer ineficiente e excluído, ou o direito a permanecer desligado fora do horário de trabalho, ou o direito de permanecer invisível face às câmaras de vigilância, ou o direito e o privilégio de trabalhar exclusivamente com humanos? Mas num universo cada vez mais digital, qual é a ética prática que prevalece? A da inteligência artificial e da computação cognitiva ou a ética da humanidade, mesmo já aumentada e melhorada, onde as dores da vida quotidiana, a sensibilidade e a empatia são muito mais importantes do que a pureza teórica e a embriaguez tecnológica?