Do mandato da procuradora-geral da República
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A Direita populista e antidemocrática empenhou-se despudoradamente em transformar a escolha do novo procurador-geral da República num circo mediático. Quem quer que seja o nomeado, irá ter de arcar, pelo menos no início do mandato, com a suspeita de que a sua nomeação foi determinada não por mérito próprio a bem do legítimo interesse público mas apenas pelas razões mesquinhas e sectárias que têm alimentado certa Comunicação Social ávida de intrigas e de escândalos. A nomeação de Joana Marques Vidal, em 2012, não me causou a menor surpresa. Conheci a dra. Paula Teixeira da Cruz, a ministra da Justiça que propôs o seu nome, quando fizemos parte do Conselho Superior do Ministério Público, eleitos pela Assembleia da República, há 18 anos. Recordo com muito gosto os combates difíceis que ambos travamos em defesa de um Ministério Público mais autónomo, mais interventivo e menos dependente dos preconceitos corporativistas inerentes a este tipo de organizações. E também conheço muito bem a dra. Joana Marques Vidal a quem dedico, de há muito tempo, um grande respeito e uma profunda amizade. O rigor, a sobriedade, a determinação e a competência que demonstrou no desempenho de um mandato extremamente complexo, marcado por um crescente ativismo judicial amplificado e distorcido por alguns meios de Comunicação Social, veio confirmar o acerto da sua nomeação para estas altas funções, em 2012. É exemplar o silêncio que a procuradora-geral tem observado, indiferente ao espetáculo lamentável das acusações grosseiras e dos elogios hipócritas esgrimidos nessa reles contenda.
A nomeação da titular do "órgão superior do Ministério Público" ocorreu no quadro constitucional resultante da revisão de 1997 onde se fixou a duração do mandato em seis anos. Souto de Moura e Pinto Monteiro, seus antecessores, exerceram funções entre 2000 e 2006 e entre 2006 e 2012, respetivamente. A nomeação é de natureza política e o desempenho do mandato do procurador-geral encontra-se, por imperativo constitucional, sob o permanente escrutínio do presidente da República, do Governo e do Parlamento. Com efeito, a fixação do mandato de seis anos é estabelecida, "sem prejuízo" da competência do presidente da República para a "nomear e exonerar, sob proposta do Governo", (alínea m) do artigo 133.0º da CRP). É missão do Ministério Público "participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática", conforme o seu estatuto e autonomia, "nos termos da lei" (artigo 221.0 da Constituição). A Constituição traça uma demarcação clara entre a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e o poder político democrático.
Subjacentes à fixação do mandato de seis anos estão não só as preocupações de assegurar a autonomia institucional e a continuidade das orientações institucionais mas também o desígnio de contrariar a acumulação de mandatos sucessivos que prejudica o princípio constitucional da renovação e a proibição de cargos vitalícios. Embora nenhum preceito explicite o impedimento de uma eventual recondução, tem sido prática habitual seguir o princípio da renovação, por analogia com o que sucede com outros cargos de duração mais longa como, por exemplo, os juízes do Tribunal Constitucional. Evidentemente, nem todos os sucessos e fracassos da ação do Ministério Público são mérito ou defeito da procuradora-geral da República. A tentativa justiceira de lhe atribuir um papel messiânico no combate ao crime económico e à corrupção política desqualifica o Estado de direito, degrada a democracia e apenas serve as pulsões autoritárias em perigosa ascensão na Europa e no Mundo. E, além de tudo o mais, Joana Marques Vidal não merece ser envolvida em tal desconcerto.
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL