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Os portugueses sabem, afinal, da crise aquilo que sentem. O Governo nega algumas evidências, os partidos da Oposição são incapazes de reconhecer alguns sinais positivos. Ainda não chegou a hora de tocar a reunir
De repente, como se nada de mais importante houvesse para discutir, o palco político aparece dominado pela questão da revisão constitucional. A matéria já esteve na ordem do dia, com os direitos dos trabalhadores em cima da mesa, mas o PSD recoloca-a na ordem do dia, agora inesperadamente a propósito dos poderes presidenciais. À parte tratar-se de uma guerra perdida - porque são precisos dois terços e PS, BE e PCP não mexerão uma palha nesta matéria -, não se percebe como um candidato a primeiro-ministro se presta a um exercício meramente académico, numa altura em que as dicficuldades dos portugueses se agravam e que os eleitores querem saber como governará o principal candidato, aquele que as sondagens colocam agora na frente. Acresce que Passos Coelho trouxe para a ribalta um assunto que nem sequer é pacífico no seio do seu partido e já ouviu as primeiras críticas (sim, é verdade, também aplausos), quando o que precisa é de mostrar uma retaguarda unida e forte, tudo o que faltou ao partido antes da sua chegada.
A questão é esta: o nosso futuro será melhor se o presidente da República puder demitir Governos sem dissolver o Parlamento? Já passámos por isso, lembram-se? E foi o esforço de alguns partidos, nomeadamente PSD e PS, que fez recuar o estipulado na Constituição, então por vontade do MFA. É claro que numa altura de crise, falhando os governos, é extremamente oneroso recorrer a eleições. Mas depositar nas mãos de um presidente, mesmo eleito em sufrágio universal, um poder tão grande significa, até pelo recuo que representa, passar aos partidos um atestado de enorme incapacidade, passar aos partidos um atestado de responsabilidade pela instabilidade, sem que sejam capazes de encontrar soluções alternativas. Ou seja, a quase inutilidade. Melhor fora que se propusesse um regime presidencial.
Do lado do PS a tentação de colocar na mesa da discussão o Estado social é grande. Supostos ataques do PSD, agora classificado como neoliberal, justificam que Sócrates e o ministro Vieira da Silva ergam bandeiras da esquerda, sempre úteis quando se trata de combater a direita. A acusação ao PSD parece exagerada, mas a táctica mostra que as sondagens são uma coisa e a vontade de José Sócrates atirar a tolha ao chão cedendo perante os seu adversários é outra coisa bem distinta. Se o PSD estava a contar com alguma macieza de trato, o debate do estado da Nação ter-lhe-á mostrado o clima que encontrará no futuro.
Portas acordou para uma aliança parlamentar. Tarde, embora se suspeite que o líder centrista queria mesmo era, tão-só, ter outra vez sobre si os holofotes. Conseguiu. Se Portas quisesse mesmo um acordo, nesta altura teria usado outras palavras, e certamente escolhido outro local para lançar a proposta. Precisou de protagonismo. As férias que aí vêm podem ser a altura propícia para o PP aferir o que o futuro lhe pode reservar: uma maioria absoluta do PSD torna o PP inexistente. E esse é um cenário que parece cada vez mais possível. Como lidará Paulo Portas com ele?
O debate do estado da Nação foi cristalino: quem esperava perceber da boca dos políticos como vai o país, ouviu retratos diferentes. O Governo nega algumas evidências da crise, a Oposição é incapaz de reconhecer alguns sinais positivos. Os portugueses sabem, afinal, da crise aquilo que sentem. Os sinais que recebem são diversos: se não fossem os apoios do Estado, 45% dos portugueses estariam em pobreza relativa, segundo dados do INE. Não nos preocupemos: as estatísticas também mostram que em nenhum país da Europa se comprou tantos carros no primeiro semestre como em Portugal! Para os partidos ainda não chegou a hora de tocar a reunir, se é que chegará algum dia.