Nestes dias em que se lê menos, é provável que poucos tenham sequer folheado "O estranho caso de Dr. Jekill e Mr. Hyde", escrito por Robert Louis Stevenson em 1886. Mas quase todos temos uma ideia de como se transformou num símbolo a ideia de alguém que tanto representa o bem e a afabilidade (Dr. Jekill) como, ao mesmo tempo, se pode transformar num ser amoral e violento (Mister Hyde).
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Quando há dias estourou o caso dos acordos fiscais especiais do Luxemburgo, fui reler aquelas cem páginas. E cada vez mais me convenço que, em 2014, Doctor Juncker convive mal com Mister JunckerHyde, o seu lado mais obscuro e amoral.
Doctor Juncker foi primeiro-ministro do Luxemburgo durante 18 anos. É muito ano, deve ter tido tempo para conhecer cada centímetro quadrado do Grão-Ducado. Mas teve tempo também para aceitar, entre 2002 e 2010, acordos fiscais generosíssimos com empresas e multinacionais que, na prática, retiraram receita fiscal a outros países que devem significar, em acumulado, muitos milhares de milhões de euros. Como era de prever, estes acordos foram até agora secretos, nunca tendo sido notificados a qualquer outro Estado-membro.
A malandrice foi descoberta depois de um trabalho de investigação notável levado a cabo por um consórcio de jornalistas de diferentes países e órgãos de comunicação social. Envolveu, em concreto, mais de 340 acordos fiscais "especiais" com "pequenas" empresas como o IKEA, a Pepsi, a Apple, o Deutsche Bank e a Amazon. Coisa de pouca monta, como se vê.
Agora, o Luxemburgo - colocado em cima da brasa - afirma que foi tudo "legal", que nada põe ou pôs em causa as normas fiscais nacionais ou internacionais. Doctor Juncker, presidente da Comissão, cantando à capela, confirma que é tudo legal.
Doctor Juncker, é certo, ficou no início calado perante a divulgação massivamente fundamentada de todos estes factos. Mas, quando falou, melhor fora ter ficado mais calado do que uma freira de clausura.
Então, na versão de Doctor Juncker, a história é assim.
Era uma vez um primeiro-ministro, Mister JunckerHyde, que promoveu, aceitou e ratificou processos que Doctor Juncker considera serem legais mas que podem corresponder a demasiada "engenharia fiscal". Doctor Juncker, depois, afirma ser "politicamente responsável" pelos acordos fiscais secretos abençoados por Mister JunckerHyde.
Naturalmente, este assumir de responsabilidade deve ser aplaudido. Mas, ooops, essa responsabilidade política morre solteira, porque se refere a factos no passado de JunckerHyde e não à vida presente de Doctor Juncker. Passando para português: Juncker não responde como primeiro-ministro, porque já não o é. E não responde como presidente da Comissão, porque o que fez, fez como primeiro-ministro.
Mas, a história continua. A Comissão está, desde junho, a investigar as práticas fiscais do Luxemburgo, da Holanda e da Irlanda. Se houver uma decisão negativa, a Comissão até se dispõe a punir o Luxemburgo, e este "terá de assumir e tomar medidas" para arrepiar caminho.
Pois, mas a Comissão é, desde 1 de novembro, presidida por Doctor Juncker. E vai ser ele, se for esse o caso, a punir Mister JunckerHyde? Não haverá aqui, sei lá, um conflitozinho muito pequerruchinho de interesses? Não, responde de forma indignada Doctor Juncker, claro que não.
Aliás, a culpa não é sua. Já adivinhou, é dos estados europeus que têm impedido um sistema fiscal comum. "Eu nem queria e até sou contra a evasão fiscal", terá dito para com os seus botões Doctor Juncker, "mas um homem também não é de ferro, caramba!"
Doctor Juncker compromete-se agora a promover a adoção de uma diretiva que impeça, no futuro, estas situações "desagradáveis". Compromete-se a lutar com todas as suas forças por um verdadeiro direito fiscal europeu, com regras e obrigações iguais para todos os estados. Pois claro, passado é passado, não se fala mais disso.
Sobre toda esta salada luxemburguesa, lembrei-me de uma frase lapidar, a propósito dos processos negociais europeus: "quando se trata de coisas importantes, é preciso mentir". O autor desta afirmação é Doctor Juncker. Jean-Claude, para os amigos. Eu, não diria melhor.
