Afectado pela vertigem do púlpito, perante uma plateia de jovens médicos, o bastonário desta ordem resolveu disparar contra o Governo. Começou por se referir às taxas moderadoras, que se tiverem o efeito pretendido pelo legislador irão restringir a utilização desnecessária de cuidados de saúde, com um impacto óbvio no recurso a médicos e disse, a propósito do aumento previsto, que "não é admissível aumentar os impostos sempre aos mesmos. Para isso não precisamos do ministro das Finanças, basta um contabilista. É necessário que a economia paralela pague impostos. Só isso seria suficiente para equilibrar o Orçamento do Estado". Acrescentando ainda que "se o ministro da Finanças não sabe como fazê-lo, que dê lugar a quem saiba, porque não é difícil taxar a economia paralela". É agradável saber que o senhor é especialista nesta matéria e por isso, recomendo vivamente a Vítor Gaspar que marque uma consulta de urgência com ele. Resta saber se, no final, lhe irão perguntar se quer "com factura ou sem factura"...?!
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Depois, o discurso do dirigente corporativo recuou aos tempos de Salazar para abordar a questão da emigração, tema quente de momento, suscitado pela entrevista de Passos Coelho. Talvez ele não saiba que a política de Salazar era a oposta, na medida em que o Estado Novo procurou estancar a emigração para garantir a mão-de-obra barata, mas o que ele queria verdadeiramente era alertar para o facto de que, em 2012, os jovens médicos podem ser confrontados com uma nova realidade, "um excesso de candidatos para o número de vagas da especialidade". Confesso que não posso avaliar se essa sua preocupação faz sentido. O que se sabe é que tem havido, nos últimos anos, uma escassez de médicos portugueses, o que tem obrigado o Estado a contratar médicos estrangeiros e, em parte, essa escassez de médicos portugueses decorre de políticas públicas às quais a sua Ordem não é alheia. Diria mesmo que com elas foi sempre conivente.
Mas, admitindo que este bastonário não é responsável por isso, e acreditando que a situação se tenha alterado, pelo menos em algumas especialidades, seria bom que nos esclarecesse sobre a melhor forma de evitar o excesso de oferta se não pretende que os médicos possam ter condições para emigrar. Deverão ficar em Portugal, recorrendo ao subsídio de desemprego? Ou deverá o Estado admiti-los nos seus quadros, mesmo que não haja doentes que o justifiquem? E, se for esse o caso, não constituirá essa conduta um crime económico, a exemplo daqueles que ele denuncia? É que no final do discurso, José Manuel Silva defendeu o julgamento dos "governantes da última década, para condenar os corruptos e ilibar os justos, mas sobretudo para transmitir uma mensagem de responsabilização", já que "não é tolerável que alguém conduza o país à bancarrota e não seja, no mínimo, julgado por crime económico".
As convicções do bastonário da Ordem dos Médicos são, naturalmente, legítimas. Estão, aliás, alinhadas com as de muitos interesses corporativos que se vão manifestando, agora que alguns dos seus privilégios estão em risco. Na questão da emigração, por exemplo, a verdade inconveniente que ouvimos da boca do primeiro-ministro deixou as mentes brilhantes em sobressalto. Pois, Passos Coelho parece alimentar-se com o soro da verdade, o que não é politicamente correcto neste país do "faz de conta".
O caso mais extraordinário é o da anterior ministra do Trabalho que, como se sabe, teve resultados apreciáveis na criação de emprego. Esta semana, em entrevista à RTP-I, revelou-se indignada por Passos Coelho admitir essa possibilidade. Curioso, ou talvez não, é que esta senhora, gravemente enferma com a amnésia selectiva que afectou muitos dos nossos anteriores governantes, disse, em entrevista à FOX News, em Dezembro de 2010, quando tinha responsabilidades governativas, que os jovens portugueses deveriam ser abertos e flexíveis, e admitiu que isso incluía a emigração, tal como os portugueses fazem há décadas... Será que José Manuel Silva tem cura para esta maleita?