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O mesmo dia. O mesmo país. Duas notícias. Dois países? A primeira tem por base uma análise do Banco de Portugal (BP) sobre a evolução dos custos unitários de trabalho, por comparação com o que se passa nos restantes países da União Europeia. Recolhem-se dados sobre o andamento dos salários e da produtividade. Se os salários aumentam mas a produtividade cresce mais depressa, os custos do trabalho incorporados num produto baixam. Se baixarem mais do que noutros países, os nossos produtos ter-se-ão tornado relativamente mais baratos se todos os outros custos se tiverem mantido constantes. Teremos ganho competitividade, o que se poderá vir a reflectir num aumento de exportações ou numa diminuição de importações.
Este é o processo virtuoso de fazer as coisas. Se não formos capazes de ir por este caminho, teremos necessidade de enveredar pela famosa "contenção salarial" que, no limite, pode derivar para uma descida dos salários. Vários analistas têm acenado com esta hipótese como a única alternativa para mantermos o emprego e, eventualmente, recomeçarmos a crescer. Ao contrário do que muitos julgam, a sugestão pode não ter um cunho ideológico mas ser o resultado frio do estudo da capacidade, ou incapacidade, das nossas empresas conseguirem colocar os seus produtos nos mercados internacionais. Mesmo que achem Portugal um país de gente simpática, bom para passar férias e, em face da crise, um aluno aplicado, ninguém comprará os nossos produtos apenas por isso. É essa a realidade, nua e crua, da concorrência: os países não podem ser vistos isoladamente. Para artigos semelhantes, prefere-se o mais barato, venha de onde vier. Não é só lá fora: pergunte-se aos consumidores portugueses se, na hora de comprar, olham para o país de origem ou para o preço ou, numa perspectiva optimista, quanto estão dispostos a pagar a mais por ser português.
A dita análise do BP, feita de números, gráficos e umas quantas notas técnicas, permitiu aos jornalistas extraírem a conclusão de que, não obstante os custos unitários de trabalho, em Portugal, estarem a evoluir melhor do que na Zona Euro, ainda não seria o suficiente. Para ficarmos alinhados com a média, os nossos custos unitários em trabalho teriam de descer cerca de 10 por cento.
Obviamente, baixar salários não é solução. É um remendo. Pode ter de ser. Para o sabermos, os dados do BP não são suficientes nem, talvez, adequados. São o que são, o que se usa internacionalmente. Não reflectem, por exemplo, a concorrência pela qualidade. Pior do que isso, na actual conjuntura, ao trabalharem com os valores que constam dos contratos de trabalho, não reflectirão, muito provavelmente, muito do que se passa no sector privado da economia, sobretudo ao nível das PME. A realidade. É aqui que entra a segunda notícia. Uma crónica do país real. E essa crónica diz-nos que, muito provavelmente, o tal ajustamento salarial já está a acontecer. Segundo o JN, de um ano para o outro, aumentaram 9,4% aqueles que recebem um salário líquido inferior a 310 euros. 310 euros! Bastante abaixo do salário mínimo, mesmo depois dos descontos. Não são valores que constem dos acordos colectivos de trabalho, nem do que se comunica ao Fisco e à Segurança Social. São os que as pessoas declaram receber. Não sabemos se resultam de um aumento de trabalho a tempo parcial. Se fazem parte da economia informal. Se resultam de ajustamentos que as empresas fizeram num acordo, mais ou menos forçado, com os respectivos trabalhadores, pressionados para manterem o emprego quando o desemprego alastra.
Quem anda por aí, com os olhos abertos, sabe que, qualquer que seja a razão, é isto que se está a passar e que vai permitindo a muitas empresas sobreviverem e a muitos mais trabalhadores manterem o seu emprego. Algo que os doutos juízes do Tribunal Constitucional, olimpicamente, ignoram.
Reduzir salários não é solução. É um paliativo. Na vida real, tal como se faz com os medicamentos, há quem já o esteja a tomar, antes mesmo da prescrição. Pode criar dependência. A verdadeira medicina terá de ser outra.