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Foi bom que o Fórum do circunspecto BCE se tivesse realizado em Portugal. Os investidores e financeiros mundiais seguiram a reunião e mal entenderiam se o Fórum ocorresse num país a desmerecer confiança. De algum modo, o BCE e os seus convidados avalizaram o nosso futuro e certificaram a nossa capacidade pós-troikiana.
Draghi e o crédito às empresas...
Draghi mediu, como sempre, as palavras e os sinais, levantou de novo alguns véus, reconheceu que alguma coisa já foi feita pelo BCE e que alguma coisa está ainda por fazer. E, de passagem, referiu-se ao caso concreto de Portugal. Em países sob ajustamento, como Portugal, a dívida que vem do passado pode ser excessiva mas a nova dívida para crescer pode ser exígua. Aqui estamos caídos no paradoxo do crédito a mais e a menos. A quem cabe, antes de ninguém, quebrar estas algemas? Cabe ao BCE, ponto final. Draghi voltou a fazer um discurso de quem se rende à evidência e promete agir mais e melhor. A evidência é esta, mas dita ou redita por Draghi tem outro valor, só desejo que tenha outras consequências: o crédito bancário não apoia adequadamente os países sob ajustamento troikiano, ou pós-troikiano, da Zona Euro (ZE). O BCE está a ponderar seguir - com uma demora que só pode ser de quem sabe o que está a fazer - as práticas dos bancos centrais dos EUA, Inglaterra, Japão: injectar mais liquidez no mercado mediante compras de mais activos dos bancos comerciais. Veremos quando e como isso chega às PME da chamada periferia da ZE. Além disso, o BCE poderá fazer novos cortes nas taxas de juro de referência. Estando elas, porém, tão baixas como já estão, o BCE poderá resvalar para a exibição de impotências que não ajudarão nada.
Draghi afirmou que as PME têm sido muito atingidas pela restrição do crédito, e muito mais ainda nos países como Portugal. Retomo a crónica do JN da semana passada, sobre o financiamento das empresas e o crescimento da economia. A vida das PME portuguesas não é fácil e, está visto, com o contemplativismo do BCE, não vai melhorar. Oxalá o senhor Draghi pense de facto nas PME dos países como Portugal e passe a actuar mais e a contemporizar menos, ainda que saibamos que a política monetária do BCE não possa ser discriminante por países.
Draghi e a quase obsessão...
A inflação na ZE tem sido bem comportada, talvez bem comportada de mais. Em quase vinte anos, de 1995 a 2014, incluindo pois alguns dos anos preparatórios da ZE, a inflação anual andou assim: picou um máximo de 4%em meados de 2008; desceu a um mínimo de -0,6% em meados de 2009; em média rondou a meta convencional dos 2% do BCE; esteve abaixo de 1%, com eventuais riscos de deflação, em seis meses de 1998/99, depois em quase todo o ano de 2009 e inícios de 2010, novamente nos últimos três meses de 2013 e agora em 2014. Esta é a história que o BCE tem para contar sobre o seu objectivo estatutário n.°º 1, que é a inflação, uma espécie de poderosa obsessão, que por isso pode tornar-se perigosa. O BCE tem o pavor germânico da inflação, não tem um simétrico pavor da deflação, mas talvez devesse ter. Como se sabe, deflação é o fenómeno inverso da inflação: descida, em vez de subida, contínua e geral dos preços. A deflação está associada a fases baixas, más e demoradas do ciclo como, por exemplo, a Grande Depressão de 1929 e anos 30. Em Sintra, Draghi redisse que há riscos de deflação na ZE, sobretudo na periferia onde nós nos situamos. E o que faz o BCE? Das palavras aos actos vai uma eternidade. Os relógios de um banqueiro central não são vulgares de Lineu. Os observadores acham que se a deflação ameaçar algo mais, o BCE tem pronto a disparar o tal programa em grande escala de compra de activos e injecção de liquidez. Enfim, o BCE conhece a "armadilha da liquidez", só que, repetindo-me, os riscos são desiguais, são muito maiores em Portugal do que, por exemplo, na região sede do BCE. É claro que a deflação uma vez instalada é contagiosa. A propósito da obsessão do BCE, interrogo-me sobre um pequeno mistério de Sintra. Aparentemente, "traz água no bico". Primeiro, reunir o Fórum em cima das eleições europeias pode ser uma simples coincidência? Pode. O facto é que se antevia poderem as eleições trazer recados de mudança. E, consumadas as eleições, Draghi aparece a concluir que os europeus estão a ficar desancorados e precisam de ver o BCE a responder às questões do crescimento. Segundo, o Fórum pode convidar um "inimigo" da ZE num momento delicado? Pode. Krugman reiterou que o BCE deve aceitar um pouco mais de inflação da ZE, de modo a empurrar a economia dos países como Portugal. Curiosamente, em inícios dos anos 90, defendi que a inflação moderada era um "tempero" do crescimento e, repare-se bem, que Portugal iria perder se fosse medido pelo mesmo padrão de inflação da Alemanha.