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Em tempo de poder psicopata, subserviência e ataques à liberdade de expressão, sublinhe-se a importância de duas linguagens universais: caricatura e música. Ambas são expressões maiores da liberdade e da criatividade. E ambas perderam recentemente dois vultos especiais. Falo de Luis Borges Coelho, maestro, e Jaguar, caricaturista.
Criador do Coral de Letras do Porto, Borges Coelho espalhou a música para fora das elites e fez das "Heroicas", de Lopes Graça, um hino permanente à vida e à liberdade. Sob a sua maestria, o Coral abrilhantou a abertura do Museu Nacional da Imprensa (1997) pelo presidente Jorge Sampaio. Em lugares solenes, ou na rua, espalhou a música, fazendo dela um elo de ternura. Como na Estação de Metro da Casa da Música, para celebrar a poesia de Manuel António Pina. E entoar "acordai, acordai".
Sérgio Jaguaribe é Jaguar, o indomável artista, falecido no Rio de Janeiro, pouco tempo depois de Coelho. Tinha 93 anos e desenhou até ao fim.
Combativo, resistente, inovador, Jaguar foi o último caricaturista de uma geração de ouro que fundou o "Pasquim", em plena ditadura militar. Corria o ano de 1969. Aventura de um punhado de jovens, condenada a curta existência. Tornou-se num fenómeno, com 100 000 exemplares/edição. Durou 22 anos.
Apesar da repressão, soube fintar os censores. A mascote do jornal - rato Sig - criada por Jaguar, espreitava tudo, intervindo jocosamente, como bem queria, na sua remissão ao psicanalista Sigmund Freud. Se o sexo foi matéria abundante, não faltou espaço para a política.
O jornal também inovou no jornalismo. Frisando a sua passagem "de cartunista para jornalista", contou-me Jaguar, há poucos anos, em Piracicaba, que o Pasquim também "mudou a linguagem jornalística". Por acaso, disse. Coube-lhe tirar do gravador a primeira entrevista do Pasquim. Era a Ibrahim Sued, jornalista de televisão. Jaguar conta que levou os papeis com a entrevista para os redatores que "estavam na farra", numa "boîte". "Eles disseram, está legal, mas agora tens que botar na linguagem jornalística". Jaguar interrogou-se: Que é isso de linguagem jornalística? Lá explicaram, mas "agora é tarde, o jornal está na hora de rodar, só se for assim mesmo, na linguagem comum, falada". Discussão. Jaguar fez valer a sua voz e "a entrevista virou revolução". Outros jornais começaram a publicar as entrevistas em linguagem corrida.
Orgulhoso desta história, Jaguar não esqueceu a época das prisões. Corria novembro de 1970 e quase toda a equipa foi presa pela polícia política. O jornal ficou sem ninguém. Continuou a sair, com voluntários liderados por Millôr Fernandes. Ouro para o "jornalismo de humor"!
Jaguar e Coelho fizeram do humor e da música duas artes imprescindíveis à vida. Quem duvida?