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Esta semana, a propósito das homenagens a Mário Soares e Cavaco Silva, dei por mim a pensar nas palavras que usaria para definir cada um dos presidentes.
E como não se é presidente ou primeiro-ministro mas está-se presidente ou primeiro-ministro, então quando se deixa de estar o que é que fica?
O que nos deixou Mário Soares? O que nos deixou Cavaco Silva?
A resposta deu-me as palavras-chave: Mário Soares deixa-nos um legado. Cavaco Silva deixa-nos um estilo.
Ou seja, o que me vem à cabeça sobre Mário Soares foi o que fez. O que me vem à cabeça sobre Cavaco Silva foi como o fez.
Associo Mário Soares a palavras como luta antifascista, democracia constitucional, pulsão europeia, Estado social. O cérebro devolve-me a memória de conquistas, de luta de ideias de um tempo onde a economia ainda vinha a seguir à liberdade. Devolve-me ainda reminiscências de um discurso muito pouco autocentrado - Mário Soares não dizia eu fiz, eu aconteci - e um retrato psicológico de uma personalidade descontraída, genuinamente à-vontade com os seus próprios erros.
No seu conjunto, a sua memória já é e será sempre um legado. Na dupla aceção de herança, doação, contributo e de emissário, embaixador, mensageiro. Simultaneamente património e exemplo.
Cavaco Silva devolve-me da memória a palavra estilo. Ou seja, instintivamente lembro-me da disciplina que instituiu no desempenho de funções governativas, da resistência às emoções, do esforço em manter do princípio ao fim a ideia de um presidente rigoroso e fixamente institucional, da dificuldade em prescindir da sua autoimposta obrigação de omnisciência sobretudo no que diz respeito às questões económico-financeiras, da mensagem subliminar permanente de que a aplicação miudinha nos garantiria um amanhã mais risonho.
Os tempos em que exerceu funções foram ao mesmo tempo uma tentação e uma armadilha. Os fundos estruturais abundantes e as condicionantes da integração europeia estimularam as folhas Excel e afunilaram a margem de manobra.
A leitura estratégica dos tempos é imanente a Mário Soares e foi-lhe diretamente pedida pelas circunstâncias. Tal como a operacionalidade tecnocrata foi a segunda pele de Cavaco Silva. Mas não deixou de ser apenas um modo de fazer.
E ao pensar nestas coisas, ocorre-me que Marcelo Rebelo de Sousa, o Soares em potência dos nossos dias presidenciais, pode, apesar disso, ficar na nossa memória apenas como um estilo.
*ANALISTA FINANCEIRA