Duas vítimas, dois crimes: quando a violência doméstica destrói a infância
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O apelo aflito de uma criança rompeu o silêncio e revelou, de forma brutal, a incapacidade coletiva de proteger as vítimas de violência doméstica. Esta continua a ser uma das mais graves violações dos direitos humanos em Portugal. Porém, há uma vítima que passa despercebida: a criança que presencia estes atos.
Durante demasiado tempo, o sistema judicial centrou-se na vítima direta ignorando o impacto devastador que a violência tem sobre os filhos. Estes não são meros espectadores, são verdadeiras vítimas. Crescer num lar onde o medo é constante transforma a infância. A criança que presencia a violência internaliza o medo, desenvolve ansiedade, insegurança emocional e dificuldade em compreender relações saudáveis. Cada grito, insulto, ameaça ou gesto violento presenciado corrói a segurança que deveria ser a base da infância e deixa na criança cicatrizes que podem marcar uma vida.
É hora de a sociedade perceber que cada episódio de violência doméstica tem duas vítimas: a pessoa diretamente agredida e a criança que assiste à agressão. Cada vez que ignoramos estas crianças, negamos-lhes proteção, segurança, amor, dignidade e possibilidade de viver num ambiente saudável e permitimos que a violência continue silenciosa, poderosa, moldando as gerações futuras, replicando-se em cada novo agressor. Por outro lado, cada criança que protegemos é um passo para quebrar padrões que se repetem de geração em geração, é afirmar que o lar não pode ser um espaço de medo, mas sim de afeto, proteção e segurança. E cada oportunidade perdida reforça o ciclo de violência.
O grito que se ouviu numa casa não foi apenas um pedido de socorro dentro de quatro paredes. Foi um grito dirigido a toda a sociedade. E a pergunta é: vamos continuar a fingir que não ouvimos?