A 10 de agosto de 1914, era Aquilino Ribeiro estudante da Faculdade de Letras da Sorbonne, em Paris, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Tinha 28 anos. De tão sofrida coincidência resultou uma crónica que viria a ser publicada 20 anos mais tarde: "É a guerra". Começa no dia 1 de agosto, sábado, em Paris, e a última página do diário é "garatujada" já na precipitação do regresso a Portugal, num outro sábado, dia 26 de setembro, "sobre a mesa pé-de-galo dum hotel de Bordéus".
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A livraria Bertrand não podia ter encontrado melhor forma de assinalar o primeiro centenário da guerra: em maio deste ano, o diário foi de novo publicado, incluindo a dedicatória do autor a António Gomes Mota - que integrava a edição original, de 1934 - e um belo prefácio da responsabilidade de Mário Cláudio. O destino iria conferir ao "diário de guerra" de Aquilino uma perturbadora dimensão premonitória que o autor, desde a primeira linha, desgraçadamente intui. No primeiro dia, confirmada a iminência da mobilização geral, regista no diário: "Bonitos monstros vai parir esta guerra!" E na dedicatória ao seu correligionário Gomes Mota, a propósito da primeira edição, de 1934, esclarece: "Suprimi apenas aquelas páginas em que me arvorava em oráculo que lera no futuro com acerto, pois seria risível pospor a profecia aos próprios acontecimentos. Bandarra só para o dia seguinte. Outras, em que os factos me desmentiram, conservei-as porque um cálculo errado de meteorologia social não é menos instrutivo que um cálculo justo". E acrescenta Mário Cláudio, em 2014: "Publicada duas décadas decorridas sobre o rebentamento das hostilidades, a obra sinistramente augura aquilo que o diarista não se coíbe de apontar, a emergência de uma segunda, e não menos catastrófica conflagração".
O meu amigo Eduardo Jorge Madureira Lopes dedicou as suas duas últimas crónicas de Domingo, no "Diário do Minho", ao livro de Aquilino: "Aquilino Ribeiro contra a guerra" e "Aquilino Ribeiro cansado da guerra". Nelas partilha a indignação do autor contra o assassínio de Jean Jaurés por nacionalistas fanáticos que impunemente se arrogam o direito de justiçar os pacifistas. Nelas partilha a denúncia da xenofobia praticada pelos arruaceiros habituais e inspirada por governantes, diplomatas, "jornalistas e homens de letras". Nem o embaixador João Chagas, pressuroso adepto do envolvimento de Portugal na carnificina, escapa ao verrinoso libelo da acusação lavrada por Aquilino.
O"terrorismo" foi bandeira dos fracos e oprimidos, "um método" legitimado por teóricos anarquistas e libertários, uma expressão da ira divina. A sua recente conceptualização por George W. Bush apenas agravou a dificuldade de fixar o seu sentido e limitar a sua ambiguidade. Além de insensata e inoperante, a transformação do "terrorismo" em objeto de uma pretensa "doutrina militar" elimina os obstáculos e apaga as fronteiras que tradicionalmente impediam a generalização da violência a todas as dimensões da vida social. E gera inevitáveis incongruências. Segundo conta o "Harper"s Magazine", esta semana, os "guerrilheiros de Partido dos Trabalhadores do Curdistão" presentemente envolvidos no combate contra os fanáticos do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, embora tenham sido classificados pelos Estados Unidos como "organização terrorista" nem por isso foram excluídos da assistência que a aviação Americana está a prestar aos opositores do ISIS.
Meio século depois de encerrado o tenebroso capítulo da Segunda Guerra Mundial e uma vez terminada a Guerra Fria - que se imaginava constituir o principal risco da terceira! - os pretextos da guerra diluíram-se e os conflitos armados descambaram numa realidade omnipresente, familiar e banal. Agora, em nome da "guerra contra o terrorismo", prende-se ou mata-se em qualquer latitude, combate-se no Afeganistão e no Iraque, na Líbia e na Síria, na Ucrânia, na Faixa de Gaza e onde calhar!