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A acumulação de chumbos com que o Tribunal Constitucional (TC) tem avaliado a governação da coligação PSD/CDS ameaça entrar diretamente na lista de recordes do Guinness Book. Desde 2012, os juízes do Palácio Ratton declararam por oito vezes a inconstitucionalidade de medidas propostas pelo Governo, dos cortes salariais à convergência das pensões, dos cortes nos subsídios à requalificação dos funcionários públicos ou dos cortes nas pensões às alterações no Código do Trabalho. Contas feitas, a decisão do TC desta semana fere de morte o terceiro Orçamento de Estado consecutivo.
É factual que o Governo não é capaz de desenhar uma política orçamental dentro dos limites da lei fundamental, nem tão-pouco revela aptidão para interpretar os acórdãos de chumbos anteriores. O desfecho destes meses de suspense só pode surpreender os mais distraídos, já que o TC havia por mais do que uma vez deixado claro que não toleraria a aplicação continuada de cortes e taxas a grupos específicos de cidadãos, no caso aos funcionários públicos e aos pensionistas.
A opção de expandir a dimensão dos cortes salariais no Orçamento de 2014, em percentagem e base de incidência, era de risco máximo. E só aconteceu porque o Governo PSD/CDS não consegue escapar de um conceito de governação onde impera a folha de cálculo, esse ente de fórmulas fixas em que se alteram umas percentagens e se obtêm os resultados pretendidos. A alternativa a esta abordagem medíocre teria sido arregaçar as mangas e, ao longo dos últimos três anos, trabalhar intensamente sobre as políticas que estimulam os mecanismos de criação de riqueza, naturalmente sem descurar o aprimoramento dos modelos de distribuição de direitos e deveres. Só que para esse caminho o Governo não teve engenho, nem mostrou vontade.
Chegados aqui, abriu-se um rombo no Orçamento deste ano que, considerando a restrição de efeito que afasta a retroatividade na reposição dos cortes salariais, pode chegar à cifra de 800 milhões de euros. A pergunta do momento é, obviamente, "e agora?".
Não me parece que exista espaço para uma crise política provocada pelo Governo, da qual pretenderia sair mais legitimado. Os resultados das europeias e o momento de indefinição que se instalou no Partido Socialista não aconselham de todo essa via. Também não penso ser possível ponderar um pedido de alteração da meta do défice para 2014. Portugal estaria, em ambos os casos, a passar uma imagem de ingovernabilidade que teria com toda a certeza consequências nas taxas de juros da dívida soberana. É preciso ter presente que, com a "saída limpa" do programa de assistência, o país colocou-se nas mãos dos mercados, pelo que as suas ações serão agora escrutinadas ao detalhe, sem que existam mecanismos formais e imediatos de auxílio para a eventualidade de nova crise de financiamento.
Resta então a opção de trabalhar sobre o Orçamento propriamente dito. Passos Coelho acenou esta semana no Parlamento com a possibilidade de novo aumento de impostos. Com o IRC em reforma no sentido da descida e o IRS esticado aos limites, resta o IVA, que tem a "vantagem" de produzir receita de imediato. Só que este é um imposto muito recessivo e o seu aumento é como que um morteiro disparado contra o principal fator de crescimento da economia, o consumo interno. Quererá o Governo insistir nos mesmos erros?
Apesar de tudo, considerada a dimensão do buraco criado e a existência de uma folga orçamental, direi que será bem possível encontrar uma solução que permita o cumprimento da meta do défice de 4%. O problema está, a meu ver, no Orçamento de 2015, para o qual o objetivo acordado é de 2,5%. Uma vez que não foram feitas as reformas de fundo, o Governo terá de recorrer ainda e sempre à mesma fórmula. É justamente por essa razão que antevejo como improvável um abandono da opção dos cortes salariais, pois isso transformaria a construção do Orçamento do próximo ano num exercício impossível.
Neste quadro, o dilema que se coloca hoje ao Governo é descobrir no acórdão do TC os sinais que lhe permitam ainda regressar às reduções salariais, mas de forma mais moderada, excluindo de novo os salários mais baixos e iniciando desde já a redução programada do valor dos cortes, num desenho que pudesse agora ser considerado constitucional. Uma coisa é certa, os perdedores serão os de sempre.