Corpo do artigo
Depois da eleição de Donald Trump, torna-se impossível continuar a fingir que o Mundo não mudou. Mudou mesmo! E as mudanças são tão vastas e incríveis que o risco de que a próxima geração não consiga já reconhecer o Mundo da geração que a antecedeu tornou-se dramaticamente verosímil.
Nas vésperas da sua tomada de posse, Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos da América - a potência mundial que outrora se reclamava bastião inexpugnável dos direitos humanos, da liberdade e da democracia - exibia numa entrevista o seu contentamento com o triunfo do movimento anti-imigrantes, na Inglaterra, que ditou o Brexit num referendo em má hora promovido pelo Partido Conservador. Dava como inevitável a desagregação iminente da União Europeia. Censurava asperamente Angela Merkl pela política alemã de acolhimento de refugiados e imigrantes. Proclamava a inutilidade da Aliança Atlântica (NATO) e, por fim, declarava a China como o seu principal inimigo. O que haverá de comum entre a América de Trump e aquela nação construída por imigrantes, santuário de refugiados, pátria de Jefferson, de Roosevelt, de Luther King e de Barack Obama? E quem se identifica na velha Europa com a nova América que Donald Trump promete? Entre outros, precipitaram-se a manifestar o seu mais vivo entusiasmo, de Leste para Oeste: os neofascistas italianos, a extrema-direita francesa de Marinne Le Pen, os dirigentes dos partidos racistas e xenófobos da Holanda e, claro, os comparsas do Reino Unido.
Em Davos, na Suíça, decorre esta semana o fórum dos mais ricos e poderosos do Mundo e quem emerge como derradeira esperança da economia global e do comércio livre... é nada mais nada menos que o presidente da República Popular da China e secretário-geral do Partido Comunista - Xi Jinping. A Oxfam é uma confederação internacional que agrega quase duas dezenas de organizações não-governamentais (ONG) de todo o Mundo e que se dedica à luta contra a pobreza, pela erradicação das suas causas, com um trabalho notável realizado nos últimos 70 anos. Antecipando-se à cimeira de Davos, divulgou um relatório que contém o mais terrível diagnóstico do estado a que chegou a humanidade. O crescimento das desigualdades atinge números absurdos: a metade mais pobre da população mundial possui, em conjunto, uma riqueza igual à detida pelos oito indivíduos mais ricos do planeta!
Entretanto, em Bruxelas, após várias peripécias e arranjos de última hora, o italiano Antonio Tajani - velho colaborador de Sílvio Berlusconi, antigo comissário e candidato proposto pelo Partido Popular - conseguia por fim, à quarta tentativa, os votos suficientes para ser eleito presidente do Parlamento Europeu! E no Parlamento português, o PSD, inconformado com o fim das políticas de impiedosa austeridade que entusiasticamente promoveu ao longo dos quatro anos e meio que durou o Governo anterior, anunciava a sua oposição ao aumento do salário mínimo previsto num decreto-lei que cumpre um acordo alcançado no Conselho de Concertação Social, já promulgado pelo presidente da República e publicado esta terça-feira. A desculpa esfarrapada que apresentou invoca a diminuição transitória da contribuição patronal para os encargos com a Segurança Social dos trabalhadores, a célebre TSU que, ainda recentemente, advogavam incondicionalmente. No meio do fogo cruzado da "luta de classes", a desorientação do PSD justifica o desabafo irónico do primeiro-ministro... por este caminho chegará o dia em que iremos ver o PSD a reclamar a "reestruturação da dívida".
É incompreensível esta cegueira que teima em não reconhecer a relação direta e causal do crescimento da insegurança das populações, do ressurgimento dos nacionalismos, do protecionismo, do racismo e do ódio aos estrangeiros, com a desregulação financeira internacional, a decadência dos velhos estados soberanos, a irrelevância da representação democrática. O afunilamento do pluralismo e a rarefação das alternativas conduz à inelutável erosão da política, da dignidade cívica, do respeito pela vontade popular. Todavia, não escasseiam recursos para o armamento e aventuras militares. Nem há crise nos paraísos fiscais.
Deputado e professor de Direito Constitucional