'E como se cada pedra/ fosse todo um Universo' *
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Li, na edição de 24 de Dezembro do JN, a notícia desta mãe que se lançou do cimo de um viaduto, nas imediações de Vila Pouca de Aguiar, agarrada à sua filhinha de 20 meses que lhe sobreviveu. O que se passou na cabeça daquela jovem mulher? O que levou esta mãe de 34 anos a entrar na auto-estrada, conduzir cerca de vinte quilómetros, estacionar junto à faixa de rodagem, trancar o carro, caminhar cinquenta metros ao longo do sinistro viaduto, pronto a cobrar mais uma vida, e despenhar-se no vazio?
Nenhum sinal, são os vizinhos quem o afirma, prenunciava o insólito movimento. São apócrifos todos os indícios, até a despedida nesse dia - "agora vou-me embora e é de vez." - que tanto podia insinuar o desfecho de uma longa hesitação como denunciar a íntima incerteza de o conseguir tornar definitivo. Enfim, nada mais comum que a "depressão" supostamente diagnosticada, rotulagem terapêutica para a nossa bem conhecida, perene e universal "tristeza". Que desespero, então, procurava ela disfarçar ou iludir? Que paixão queria apaziguar por um gesto irreversível, desconforme e louco? Porquê, esse derradeiro abraço temerário até ao fundo do abismo, como se aquela menina fosse a sua última esperança de salvação? E não seria?
Dou comigo a murmurar de cor, como uma prece, a "Balada da neve" de Augusto Gil: - "Fico olhando esses sinais/ da pobre gente que avança/ e noto, por entre os mais,/ os traços miniaturais/ duns pezitos de criança...// E descalcinhos, doridos.../ a neve deixa inda vê-los/ primeiro, bem definidos/ depois, em sulcos compridos/ porque não podia erguê-los!...// (...) E uma infinita tristeza/ uma funda turbação/ entra em mim, fica em mim presa/ cai neve na natureza/ - e cai no meu coração."
Só mais tarde - já depois de a termos "adotado" como nossa - soubemos que a menina tem um nome lindo: - chama-se Sofia. Que a mãe foi professora, era muito aprumada, e que "a filha, então, andava sempre num brinquinho". Que os pais estavam para se divorciar. Que a nossa menina resistiu com valentia a uma fratura da perna esquerda. Que o pai acompanha com desvelo a sua convalescença no hospital de Vila Real. Que o funeral da mãe se realizou, sem mais notícia e que uma inconsolável tristeza continua a pairar entre os moradores da "Quinta de Montezelos", na periferia da cidade.
Como irá este pai, um dia, explicar à "nossa menina" as circunstâncias da sua trágica orfandade? Como? "Por que razão que se perceba" arrastou esta mãe a sua menina pelo abismo onde se precipitou com um tal cuidado que a logrou proteger de um fim fatal? Quanta força, quanta ternura, quanto cuidado, sorte ou esperançosa fantasia fará falta para alcançar resultado tão altamente improvável? Escrevo compulsivamente. Amparo-me do poema VIII de "O guardador de rebanhos", de Alberto Caeiro (aquele que Pessoa, o próprio, qualificou de blasfemo): - " Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas/ no degrau da porta de casa,/ graves como convém a um deus e a um poeta/ e como se cada pedra/ fosse todo um universo/ e fosse por isso um grande perigo para ela/ deixa-la cair no chão.// Depois eu conto-lhe histórias de cousas só dos homens/ e ele sorri, porque tudo é incrível." Sim. São incríveis todas as histórias dos humanos. Por isso concluo com o poeta: "Esta é a história do meu Menino Jesus./ Por que razão que se perceba/ não há-de ser ela mais verdadeira/ que tudo quanto os filósofos pensam/ e tudo quanto as religiões ensinam?"
* FERNANDO PESSOA - FICÇÕES DO INTERLÚDIO., POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO
(TEXTO ESCRITO SEGUNDO AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO)