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Não entendo a razão por que numa cidade ainda familiar e de vizinhança, como o Porto, sucedem coisas que nos passam ao lado. Acontecem e nem vemos nem sabemos. Como a morte do meu amigo António Reis, actor emérito e notável portuense, de cuja morte só agora soube. Um ano depois! E, além do desgosto, dei por mim, uma vez mais, a apagar outro número telefónico do meu telemóvel.
É demais. Já não sei quantas vezes isto se repetiu. Tem sido verdadeira razia, nas minhas vida e amizades. Começou com a partida de Júlio Couto ("este Porto, onde tivemos a sorte de ter nascido e temos tanto orgulho em continuar a viver"). E depois Benjamim Veludo ("Parece que descobriram nos Clérigos o sarcófago T1, onde morava o Nicolau Nasoni. Tenho que ir lá para lhe apertar os ossos da mão direita".) E ainda Antero Nunes, cameraman, cineasta e humorista melancólico ("Se achas que és feliz por seres honesto / Num mundo onde a consciência é coisa frou-xa / Eu dou-te os parabéns pelo teu gesto, / Mas deixa que eu te diga: és um trou..."). E, mais recentemente, o genial inventor de riso, João Manuel ("E a vida continua... / Dizer isto me comove / Que bonita capicua / São estes 99.")
A ausência destes tripeiros deixa um vazio enorme na cidade. Não que faltem talentos ou inteligência para os substituir, mas porque representavam aspectos profundos do espírito da cidade: a graça fina, o saber-dizer, a convivialidade, a generosidade, a simplicidade. Tudo junto e mais alguns condimentos expressavam aquele valor quase absoluto (em risco de extinção) que dava sentido ao nosso quotidiano, chamado doçura de viver.
* Professor e escritor
O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA