É mais difícil estar infeliz quando se está a comer gelados
Roubei esta frase a Kurt Vonnegut, autor do livro antibelicista mais genial que conheço - "Matadouro cinco". Publicado em 1969, mantém plena atualidade. Não sei se integra os livros recomendados pelo Plano Nacional de Leitura, mas seria apropriado, por muitas razões. Se outra não houvesse, por causa da guerra que, na Ucrânia, voltou a assombrar a Europa.
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Uma pequena editora publicou agora uma compilação dos discursos que Vonnegut fez a estudantes finalistas de várias universidades norte-americanas entre 1972 e 2004. São mais de 30 anos de discursos e, como refere o próprio autor, são discursos e algumas palavras sobre a vida. Aborda temas como a ciência e a importância do conhecimento, a subordinação do poder político aos interesses dos mais ricos, a defesa das classes trabalhadoras e dos mais desfavorecidos, a guerra que serve para converter milionários em multimilionários, a tragédia do ódio que consome as energias de muitos, num permanente ajuste de contas com o Mundo: "a vingança provoca a vingança que provoca a vingança - formando uma cadeia ininterrupta de morte e destruição, ligando as nações de hoje às tribos bárbaras de há milhares de anos e milhares de anos".
Kurt Vonnegut era, simultaneamente, ateu e admirador do Sermão da Montanha. A razão era simples: substituir a lógica de vingança, tão velha como o código de Hamurabi, pela lógica da misericórdia e do perdão. "Sermos misericordiosos é, parece-me, a única boa ideia que tivemos até agora". E apela a que não se confunda a experiência de viver sem ódio com falta de convicções.
Dirige-se aos estudantes sem paternalismos, lembra-lhes a sorte que têm em saberem e conhecerem mais, em terem tido professores que fizeram a diferença nas suas vidas. Agradece o esforço de terem estudado para se qualificarem e para qualificarem o país. E pede-lhes que façam o favor de ser felizes, de ter consciência dos momentos de felicidade. Por muito fugazes que estes possam ser.
Por isso insiste que a felicidade está em pequenas coisas tão insignificantes como comer gelados, mas também em outras pequenas grandes coisas que decorrem da atenção que prestamos aos que nos rodeiam, da importância que damos ao espaço que habitamos. Sim, a felicidade pode ser procurada longe, imaginada e ambicionada sem limites, mas ela concretiza-se, no dia a dia, na forma como nos decidimos relacionar com os nossos vizinhos, com os que vivem ao nosso lado, e no que fazemos para tornar a vida mais aceitável.
*Professora universitária