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Houve um ministro que classificou antecipadamente o truque como um "rebuçado". Houve um fiscalista que o descreveu a posteriori como "desonesto". Confesso, no entanto, a predileção pela síntese bem-humorada, embora mordaz, de "Elias, o sem-abrigo", na última página de ontem do JN: paga-se a pronto, recebe-se às pinguinhas. Falo, claro está, dessa nova quimera para 2016 com que o nosso generoso Governo nos acena: recuperamos, na parte ou no todo, os 3,5% de sobretaxa de IRS que o Estado nos continuará a extorquir durante todo o ano de 2015 [esta é a parte do pagar a pronto de que fala o Elias]. Se o combate à fraude e à evasão fiscal correrem bem, ou seja, se a coleta de IRS voltar a subir umas centenas de milhões, pode ser que nos devolvam qualquer coisita [esta é a parte do receber às pinguinhas].
À parte o óbvio benefício que seria reaver pelo menos uma parte do esbulho a que os rendimentos do trabalho estão hoje sujeitos, noto pelo menos duas falácias nesta esperteza saloia, passe o pleonasmo. A primeira e mais óbvia é que o Governo atual está a prometer o que não pode cumprir, simplesmente porque à data (2016) já não estará em funções. Ou seja, deixa para outros (provavelmente o PS, aliado sabe-se lá com quem, porventura o próprio PSD) a fatura da festa eleitoral que aí vem. É toda uma nova forma de fazer política: eu prometo, tu cumpres. A segunda falácia fica clara quando se percebe que a sobretaxa afinal não é uma medida excecional, para tempos excecionais que a propaganda oficial dá como terminados (não foi o ministro Paulo Portas que assinalou com um relógio gigante o fim do período de sequestro da troika?).
Por outro lado, fica claro que a vontade de esmagar os rendimentos do trabalho é ideológica, quando, em simultâneo, se volta a baixar o imposto sobre os lucros das empresas. Eu repito, o imposto sobre os lucros. Sendo que essa redução do IRC não fica sujeita à melhoria da eficácia da máquina fiscal, é dada de mão beijada. E com isso o Estado abdica de cerca de 240 milhões de euros de receitas. E mostra portanto mais preocupação de poupar os grandes monopólios à chatice de pagar impostos elevados do que devolver sobretaxas de umas dezenas ou centenas de euros a milhões de cidadãos que fazem todos os dias ginástica orçamental para viver (em muitos casos apenas sobreviver) com dignidade.
Para se perceber melhor do que estamos a falar, nada como exemplos: os interesses chineses e angolanos na EDP, EDP Renováveis, Galp Energia e REN somaram de lucros líquidos, só em 2013, qualquer coisa como 1,57 mil milhões de euros. A Sonae, a Jerónimo Martins e respetivos supermercados, conseguiram 701 milhões de euros de lucros, igualmente no ano passado. Em todos os casos, são verbas escassas. Compreende-se que o nosso Governo queira poupar os seus gestores e acionistas a uma vida de miséria. Compreende-se que os ajude a melhorar a performance, voltando a desagravar o IRC em mais dois pontos percentuais. E para essa parte, não espera pelo próximo Governo. Porque é preciso pensar no dia de amanhã, quando já não houver salário de ministro?