É dos livros. Quando as coisas começam a ficar complicadas, a intuição substitui a razão. Aumenta a crispação. Perde-se o sentido do razoável. O impossível passa a ser a solução. Inalcançável? Pouco importa! O que faz falta é agitar a malta.
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Ou é de mim, ou em Portugal caminhamos, a passos largos, para uma situação destas. Não por pedirmos o impossível. Isso faz parte do nosso ADN. Não é nada de novo. Queremos salários mais altos, melhores reformas, emprego para todos. Empresas sem lucros, crescimento económico. A produtividade ser baixíssima? Um detalhe, sem a mínima importância. Estarmos endividados até ao pescoço? Ainda está a cabeça de fora. Valham-nos, nos tempos recentes, os santos emigrantes ou a santa União Europeia e seus fundos estruturais. Como antes, o ouro do Brasil. E antes... Algum milagre há-de acontecer! Se sempre aconteceu... Enquanto isso, vamos mas é vivendo a vida. Uma manifestação aqui, outra mega-manifestação acolá. Reivindicar é o que está a dar. Muito. E alto. Falta-nos a imaginação para uma nova palavra de ordem? Chama-se mentiroso ao primeiro-ministro. É verdade, por definição. E anima a malta. Não há manifestação? Há um anúncio pateta, como que feito à medida. Mais a mais, envolvendo uma jornalista que, ainda por cima, escreveu uma biografia do primeiro-ministro. Que maravilha! Insinua-se essa ligação. O frete. E, já agora, pede-se que o governo demita não se sabe bem quem. Nem importa. Importa é pedir, sempre, a cabeça de alguém. Dizer alguma coisa. Produzir mais um "sound bite" de que os atentos, e veneradores, meios de comunicação social farão eco. A vida custa a todos e os jornais têm de vender. Não há nem manifestações, nem anúncios? Há sempre uma taça pindérica e um árbitro patético para animar a malta (os árbitros deviam ter um prémio especial por estarem sempre disponíveis para serem carne para canhão). E ocupar os serões televisivos até, pelo menos, quarta-feira. Nessa altura, espera-se o milagre! Há-de aparecer algum outro evento, pouco ou muito importante, tanto dá. Desde que seja notícia. Escândalo, de preferência.
Em última instância, há sempre os ricos ou os grandes lucros. Pouco importa que, em Portugal, não haja ricos suficientes para acabar com tantos pobres. Acabe-se com os ricos primeiro. Depois, logo se vê. Pouco importa que as empresas sejam grandes e, por isso, tenham de ter lucros maiores do que as PME. Tiveram lucros o que, por definição, já não é bonito. E então, se forem grandes, o lucro passa a pecado. Pouco, ou nada, importa que sejam necessários recursos para alimentar o investimento. Então não é para isso que há o Estado, o milagreiro de último recurso?
E assim, nesta voragem estridente se vão consumindo as forças. Construindo antinomias. Radicais, porque personalizadas e artificiais. Logo quando eram precisos projectos claros. Análises sérias e fundadas. Sobre as quais se construam projectos mobilizadores.
Se cada um persistir em remar para o seu lado, acabaremos à deriva. Nada de novo. Já os romanos diziam que não nos governávamos, nem nos deixávamos governar. No caso, reescrevendo Saramago, qual jangada de pedra, cada vez mais perto da América Latina.