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Sempre que me perguntam como prefiro o bife, respondo "mais para o mal passado". Se a carne for boa (e não for de porco) é muito mais saborosa quase em sangue. Mas às vezes a carne é fraca e nem sempre a nossa recomendação sobrevive incólume à viagem de ida e volta iniciada com o pedido ao empregado de mesa e que tem no cozinheiro o seu vértice decisivo.
Lembro-me, a propósito, de uma lição que aprendi numa aula de Psicologia, em que o professor nos pôs a todos fora da sala, exceção feita a uma colega, a quem exibiu uma fotografia. Após observá-la bem, durante um par de minutos, ela devolveu-a ao professor e chamou um colega, a quem descreveu a imagem. Este, por sua vez, chamou outro e este procedimento foi sendo repetido até estarmos todos de volta à sala, depois de termos ouvido uma descrição em 7.ª, 13.ª ou 24.ª mão.
Mal o último aluno a entrar contou à turma que a foto era de uma senhora com um penteado antiquado e uma faca na mão, o professor mostrou-nos um retrato de uma festa de anos, com uma boa dúzia de convivas, em que a aniversariante estava a cortar o bolo e usava o cabelo à anos 60, armado com laca. Não foi preciso mais nada para eu perceber a justeza do provérbio "quem conta um conto acrescenta um ponto" - e esquece outro, acrescento eu.
Consciente das enormes debilidades das cadeias de comunicação oral, não protesto desabridamente se o tornedó que pedi "mais para o mal passado" desembarca na mesa completamente passado. Em vez de mandar a carne para trás, prefiro engarrafar a minha indignação, limitando-me a recordar ao empregado que pedi um bife mal passado. Não é só por temer represálias (sei lá que tratamento dariam, longe dos meus olhos, à segunda via do bife!?!), que adoto esta atitude. Na verdade, tenho por hábito ser compreensivo com os erros e falhas dos outros.
Este meu comportamento indulgente tanto pode ter o defeito de premiar e estimular a negligência, como ter a virtude de levar o empregado a meter-se em brios para não voltar a cometer o mesmo erro.
No livro que publicou após ganhar a Champions no Porto, José Mourinho avisava que não se deve tratar toda a gente da mesma maneira e dava o exemplo da forma como lidou com dois jogadores antes de lhes dar a primeira oportunidade de serem titulares. Ao que ele sabia que só funcionava sob pressão, avisou que se falhasse era garantido que nunca mais calçava as chuteiras e no final da época seria dispensado. Ao outro, que percebeu que se dava mal com a pressão, pô-lo à vontade, assegurando-lhe que mesmo que só fizesse asneiras, no fim de semana seguinte voltaria a fazer parte do onze inicial.
Infelizmente, há muitos que ainda não aprenderam que liderança não é não tratar toda a gente da mesma maneira, uma vez que somos todos diferentes.
Neste mundo em que as receitas milagrosas já deixaram de funcionar, a arte consiste em saber se devemos mandar para trás, com modos ríspidos, o bife excessivamente passado, ou se o mais eficaz é ser apenas pedagógico, chamando a atenção para o erro.