O momento anunciava-se com alguma indiferença, daquela que é feita a rotina, por altura da Páscoa. Mas no dia certo dessas manhãs de domingo, ganhavam vida todas as mesas de sala de todas as casas vizinhas e da minha em todas as travessas da rua.
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Um fartote de cálices de vinho do Porto e de pão de ló remendado, aos socalcos, sacado por mãos gulosas que não cuidaram de esperar um dia ou dois. Com inquisitórias excepções que nunca compreendi, o compasso chegava à minha rua a cada manhã de domingo de Páscoa. E eu sentia já o terror a perorar na véspera, graça sem Deus que findou quando a minha família começou a permitir-me fingir que dormia até tarde nessas manhãs. Um acto de caridade. As noitadas de sábado começavam a ser bem-vindas e eram o perfeito álibi para escapar ao beijo na cruz de Cristo que me parecia mais do que suficientemente beijado logo que tinha dobrado a primeira esquina da igreja de Coimbrões. Incomodava-me o ritual, a lenta subida das escadas, mártires, os sons e a ladainha em grupo, o bando de estranhos que invadia a casa com poses fífias e olhar ausente, o gargarejar grogue de uns quantos. Não gostava da sensação que ficava quando saíam e não porque me pesasse a ausência. Lembro-me de pensar em usar uns paninhos desinfectantes que podiam surtir efeito. E, quando saíam, amaldiçoava-me por dentro ao sentir que estava a comprar o meu lugar no inferno. Foram décadas de purgatório. Até que, esta semana, o Papa Francisco me devolveu a paz.
No vídeo que se tornou viral, assistimos a uma extensa fila de pessoas no santuário de Loreto em Itália que, aproximando-se de Francisco, executam o tão inato movimento de genuflexão, atirando-se às mãos do Papa à procura, dizem, de beijar o seu anel. A santíssima reacção é inesperada e fracturante: o Papa Francisco afasta as mãos com uma velocidade vertiginosa a cada tentativa, enquanto sorri candidamente e expede os fiéis com um simpático toque no ombro. O fenómeno mede-se a compasso mas já está a trazer, a lume nada brando, as habituais oposições entre conservadores e progressistas na Igreja Católica, com os dois lados a serem assaltados como se tratassem de se entrincheirar em barricadas. Aqueles que não suportam um Papa que não cumpre os mais tradicionais cerimoniais da fé clamam pelo afastamento imediato ao abrigo do sentimento da traição. O anti-Cristo chegou. Outros sonham com um Papa que podia ser este, aquele que abominaria a genuflexão hierárquica, espelho de alguém que não quer ser maior do que os outros ainda que os outros lhe sejam fiéis. A primeira explicação chega pelo gabinete de comunicação do Vaticano, Alessandro Gisotto: "foi simplesmente uma questão de higiene".
"Ecce Homo", as palavras que Pilatos terá dito para apresentar Jesus aos judeus. "Ecce Papa", apresenta-se. Sobre os germes, esses que continuo a imaginar em colónias de férias nas redes que separam as bocas sagradas e ímpias em qualquer confessionário, escreverei noutra altura (caso este Papa não resolva a questão no entretanto). Por agora, ainda pairo pela segunda explicação do gabinete do Vaticano: "ele gosta de abraçar e de ser abraçado". Nunca me senti tão próximo de Deus. Afinal é o progresso.
Músico e advogado
o autor escreve segundo a antiga ortografia