Economia criativa, metanarrativa e coesão territorial (I)
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As relações entre cultura e desenvolvimento são um assunto recorrente, mas, desta vez, o capitalismo digital e criativo mudou o paradigma que ligava cultura e desenvolvimento. O elemento-chave deste novo paradigma é a criatividade e os processos criativos. O que se propõe é que deixemos de ser, por alguns momentos, apenas consumidores, clientes, utentes e utilizadores para sermos, também, coprodutores, cuidadores, curadores e criativos do ambiente e do território que nos rodeia, tirando partido das nossas faculdades mais excecionais e criativas
Como sabemos, a lei de ferro do capitalismo – a privatização do benefício e a socialização do prejuízo – gerou inúmeras deseconomias externas contra a natureza e o nosso próprio modo de vida, como agora se constata à evidência. Estas deseconomias externas atingiram hoje um limiar intolerável de impacto sobre a natureza ambiente e sobre a natureza humana. Além disso, estas deseconomias externas só são possíveis em democracia porque os ciclos políticos são muito curtos e todos os protagonistas jogam o jogo da dissimulação e ocultação que, segundo eles, joga a favor das suas pretensões mais imediatas. Não obstante a assimetria das relações de poder do capitalismo financeiro, quero crer que os valores do património e da paisagem, a energia simbólica das artes e da cultura e a força positiva da ciência e tecnologia irão gradualmente convergir e, em conjunto, pôr um fim aos efeitos mais disruptivos da economia produtivista e suas externalidades negativas.
Aqui chegados, a grande questão em aberto é a de saber, sobretudo nas áreas de baixa densidade, como maximizar, por um lado, os efeitos diretos e as externalidades positivas da economia digital e criativa e, por outro, como monitorizar e minimizar os seus efeitos mais difusos e dispersivos sobre os territórios. Ou seja, precisamos de uma metanarrativa da economia digital e criativa que, por um lado, nos esclareça sobre o lado mais positivo e criativo de utilização dos seus dispositivos e instrumentos tecno-digitais e, por outro, nos convença da sua capacidade para mitigar e moderar os efeitos transversais mais gravosos das grandes transições.
Na verdade, tecnologia, arte e desenvolvimento sustentável dos territórios pode ser uma sequência muito prometedora se soubermos contextualizar e operacionalizar devidamente todas as variáveis envolvidas. E aqui reside a dificuldade. A década 2020-2030 é atravessada por grandes transições – climáticas, energéticas, ecológicas, digitais, laborais, migratórias, demográficas, socioculturais – que, pela sua complexidade inusitada, poderíamos designar como mudanças paradigmáticas. Desta vez, o capitalismo digital mudou o paradigma em que assentava a relação entre cultura e desenvolvimento, no sentido em que a criatividade se torna um recurso cada vez mais abundante e com ela a emergência de uma economia criativa cada vez mais abrangente e compreensiva, muito para lá das indústrias culturais e criativas mais convencionais ligadas, genericamente, às artes do lazer, do espetáculo e da cultura. De facto, vamos todos precisar de muita imaginação, inteligência e inovação, isto é, de muita criatividade para enfrentar as múltiplas incidências geradas pelas grandes transições desta década.
Nesta metanarrativa da economia digital e criativa o leque de atividades e aplicações é muito abrangente: o sistema-paisagem e a ecologia funcional no combate às alterações climáticas (1), a arquitetura e a produção de novo espaço público urbano (2), toda a grande área de digitalização do simbólico e a produção de novos conteúdos artísticos e criativos (3), o sistema científico e tecnológico e os dispositivos tecno-digitais para o seu desenvolvimento (4), a sociedade da inclusão social e dos bens comuns colaborativos (BCC) para lidar com os públicos mais vulneráveis (5), o processo criativo em matéria de redes e plataformas digitais que articulam a malha arterial e capilar das pequenas economias locais e regionais (6), por fim, a nova administração em linha e os serviços públicos de interesse geral oferecidos ao cidadão (7).
Vejamos, a título de exemplo, três grandes áreas de investigação-ação onde a criatividade e o processo criativo têm um papel fundamental: a ecologia funcional e criativa, motivada, sobretudo, pelo combate contra as alterações climáticas, a arquitetura criativa, motivada, em especial, pela recriação do espaço público urbano e a economia criativa que, através da digitalização dos processos de produção simbólica, lança as bases do nosso futuro comum.
Uma ecologia criativa, o sistema-paisagem e as alterações climáticas
Vejamos, então, as incidências principais da ecologia funcional e criativa.
Em primeiro lugar, resgatar a estrutura ecológica das cidades para combater as alterações climáticas, em especial, as operações de mitigação e adaptação. Em segundo lugar, preparar a ecologia funcional para aplicar as boas práticas de silvicultura preventiva e recuperar áreas ardidas e ecossistemas degradados. Em terceiro lugar, desenhar a matriz energética mais adaptada a cada território e comunidade produtora. Em quarto lugar, desenhar a matriz de recursos hídricos relativa à produção, consumo e poupança de água doce. Em quinto lugar, desenhar o parque agroecológico urbano que materializa o sistema agroalimentar local. Em sexto lugar, desenhar os princípios e as boas práticas de economia circular. Em sétimo lugar, desenhar as amenidades paisagísticas que protegem a saúde física e mental das populações.
Uma arquitetura criativa, a produção de novo espaço público urbano
Vejamos, agora, as incidências principais da arquitetura criativa no espaço público urbano. Em primeiro lugar, a arquitetura do espaço edificado e o seu excedente em resultado das novas formas de mobilidade urbana. Em segundo lugar, a nova arquitetura digital em resultado do processo de digitalização das atividades. Em terceiro lugar, as alterações na arquitetura urbana em consequência da nova matriz energética. Em quarto lugar, a arquitetura dos espaços socio-laborais, em resultado dos tiers-lieux da economia digital, do teletrabalho e do nomadismo digital. Em quinto lugar, a nova arquitetura da relação cidade-campo em resultado do papel das infraestruturas ecológicas e rede de corredores verdes. Em sexto lugar, a nova arquitetura dos espaços colaborativos de ciência, cultura e criatividade. Em sétimo lugar, a arquitetura das redes de proteção social e inclusão, em especial, no desenho dos serviços de proximidade e ambulatórios. Em oitavo lugar, a arquitetura do ambiente empresarial, não apenas na conexão dos tradicionais parques empresariais e zonas industriais, mas, também, no mapeamento inteligente das fileiras e cadeias de valor. Em nono lugar, a nova arquitetura da proteção civil e comunidades de risco no desenho dos pontos críticos do território. Por último, uma nova arquitetura da participação pública, em resposta às grandes transições do século XXI.
Digitalização e criatividade, a natureza do processo criativo
O terceiro exemplo diz respeito às hiperligações entre digitalização e criatividade. Na sociedade da informação, do conhecimento e da comunicação o processo criativo e a criatividade assumem um papel determinante, a saber:
Em primeiro lugar, a criatividade como criação funcional e utilitária de serviços online de interesse geral e de proximidade. Em segundo lugar, a criatividade como criação científica de bens e serviços de propriedade intelectual que nos conduzem até à inovação industrial e empresarial. Em terceiro lugar, a criatividade como criação artística individual e singular no quadro mais convencional da produção de obras de arte. Em quarto lugar, a criatividade como criação simbólica de signos e ícones representativos no quadro de uma antropologia sociocultural do espaço e do território. Por último, a criatividade como criação de objetos artificados de consumo de massas no quadro da turistisficação das indústrias culturais e criativas.
No plano da coesão territorial estas formas de criatividade e os seus processos criativos têm efeitos paradoxais sobre os territórios ao gerarem uma multiterritorialidade particular composta por territórios reais, simbólicos, virtuais, no limite, territórios de fusão em rápida mutação. Há aqui uma aprendizagem e uma capacitação tecno-digital que estão ainda por fazer e adquirir.
Nota Final
São inúmeros os desafios colocados à nova economia digital e criativa nas suas várias aplicações e hiperligações. Porque os recursos são sempre limitados, é preciso promover e organizar a cooperação descentralizada e as plataformas de rede correspondentes. Porque é preciso evitar os efeitos dispersivos e difusos, é necessário organizar uma massa crítica de intervenções e um centro de racionalidade de base territorial. Porque é preciso criar em cada comunidade inteligente um ecossistema territorial de acolhimento, é necessário criar as condições mínimas ao processo criativo, a atração da classe criativa e ao movimento starting up. Porque é preciso impedir a polarização social e o desemprego, é necessário investir muito na organização das economias de rede e aglomeração, pois são as hiperligações entre economia digital e economia criativa que nos transportam para as cadeias de valor e os respetivos produtos e serviços finais. Nesta linha de pensamento, é agora tempo para uma breve reflexão sobre o sistema operativo CIM, um centro de racionalidade de base territorial para operar a rede de economia digital e criativa.
(Continua…)