Dois dias depois de ver questionado o seu maior poder, o presidente da República recuperou a voz. Preferiu a estabilidade institucional ao impulso político, centrando a sua comunicação ao país nos problemas que verdadeiramente atingem os portugueses e na incapacidade que o Governo tem demonstrado em resolvê-los. Não foi coisa pouca.
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Marcelo Rebelo de Sousa não largou a "bomba atómica", mas desenhou com traços carregados uma "divergência de fundo" com António Costa. Não uma divergência institucional ou palaciana, mas uma diferença crucial na interpretação da responsabilidade na vida pública. Esta não era uma batalha sobre quem manda ou pode mais, embora Marcelo tenha deixado claro que o ministro João Galamba devia ter sido demitido. E apresentou bastas razões para António Costa exonerar o titular das Infraestruturas. Galamba não sai, mas fica a marinar em lume brando, ainda mais fragilizado do que estava. Pior, amarra o primeiro-ministro nesse desgaste lento, porque é dele a responsabilidade de ter permitido que a credibilidade do Governo tenha sido posta em causa.
Esse será o preço alto a pagar pela jogada tática de Costa. O caso não passa, "nunca passa", alertou Marcelo. Ao colocar em causa a confiabilidade e respeitabilidade institucional, o primeiro-ministro abriu a porta à crescente vigilância e intervenção do chefe de Estado, o "último fusível" de segurança política atento aos deslizes do Governo.
Depois de falar do passado, para apontar o dedo às promessas não concretizadas do Executivo, apontou o que exige no futuro, com ação em áreas absolutamente determinantes como os preços dos bens alimentares, o funcionamento das escolas, a rapidez na Justiça e a dificuldade no acesso à habitação. A escolha da estabilidade é a tentativa de salvar o que interessa aos portugueses, ainda que com um Governo em que já acredita pouco.
Se estamos perante um caminho sem volta, ainda é cedo para percebermos, tendo em conta até o silêncio prudente a que o PS e o Governo se remeteram. Mas de agora em diante a magistratura de influência de Marcelo será ainda mais ativa. O presidente não perdoará novas escorregadelas. O poder de fogo da palavra presidencial saiu revigorado. Cada um no seu lugar, fazendo uso das suas competências, mas sem nunca esquecer a essência dos cargos: o primeiro-ministro governa, o presidente vigia. E a partir de agora com os olhos ainda mais abertos.