Corpo do artigo
Há notícias que nos perturbam não por serem inéditas, mas por continuarem a ser possíveis. A violência doméstica persiste - silenciosa ou gritante - em tantas casas, em tantas vidas. E o mais inquietante é que pode surgir de qualquer lado, até mesmo de quem, por função, deveria proteger.
Esta violência não nasce do acaso. Ela é, quase sempre, o reflexo de uma estrutura social assente em desigualdades profundas, onde o poder e o controlo se disfarçam de normalidade, e onde as mulheres, ainda hoje, continuam a ser o principal alvo. É herança de um sistema que, durante séculos, alimentou a ideia de que a masculinidade se faz de força e de posse, e que o feminino deve ser dócil, paciente e submisso. E este padrão, muitas vezes silencioso, instala-se nas entrelinhas da educação informal, nos discursos familiares, nas piadas de ocasião, nas frases que desculpam, minimizam ou culpabilizam, legitimando a desigualdade, a opressão, o silenciamento.
Por isso, falar de violência doméstica é, acima de tudo, falar de desigualdade. E a desigualdade perpetua-se quando não é contrariada desde cedo - quando não se ensina que o respeito é indivisível, que ninguém pertence a ninguém, que o ciúme não é prova de amor, que amor nunca é posse.
Desmontar esta estrutura não é tarefa fácil. Exige mais do que leis - exige transformação cultural. E essa mudança começa pela base: pela educação nas escolas, nas famílias, na comunidade. Falar de igualdade, de respeito, de limites, de emoções, de direitos. Desfazer estereótipos. Ensinar que amar não é vigiar. Que cuidar não é controlar. Que cada pessoa é inteira, e não uma extensão de outra.
Precisamos de uma aposta clara e contínua na educação, que atravesse os currículos escolares, com conteúdos adequados às idades e à realidade social, que capacite crianças e jovens a reconhecer a violência, a identificar os sinais, a rejeitar os modelos tóxicos de relação.
Mas esta mudança não se faz apenas com crianças e jovens. É preciso formar os profissionais que, todos os dias, lidam com estas realidades: professores, magistrados, agentes de autoridade, técnicos de apoio à vítima, profissionais de saúde. Porque até entre os que deveriam proteger, pode persistir a reprodução de ideias patriarcais, que naturalizam o controlo e banalizam o sofrimento alheio.
A sensibilização da comunidade é fundamental para quebrar o ciclo da violência. São precisas campanhas sérias, contínuas, com linguagem acessível, que envolvam a escola, os media, as autarquias, os locais de trabalho, os espaços de lazer.
O trajeto é longo, mas necessário. Cada passo é essencial e faz a diferença - cada conversa aberta, cada preconceito desfeito, cada criança que compreende que respeitar é um dever, não uma escolha.
Porque, antes de saber punir, é preciso aprender a prevenir. E prevenir é educar. Para a igualdade. Para a liberdade. Para a dignidade.
Educar para desarmar, de vez, a violência.