<p>A declaração de rendimentos depositada no Tribunal Constitucional por titulares de cargos públicos "não valia nada" na década de 80, porque "nunca era levada a sério por ninguém". Isaltino de Morais, que está a ser julgado por corrupção passiva, entre outros crimes, afirmou-o esta semana com todas as letras. </p>
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Isaltino terá dito em voz alta o que outros não se atrevem sequer a sussurrar. Que o verbalize com a maior desfaçatez é preocupante. Que isso seja encarado com um sorriso complacente é grave. A menos que todos tenhamos já interiorizado que, nos anos 80 como hoje, as declarações podem ser completamente falsas. Se o conteúdo não é escrutinado, ninguém vai à mão dos autores. A ausência de castigo é combustível para a impunidade. Por isso o autarca revelou que não se sentia obrigado a prestar contas das verbas que sobraram das campanhas eleitorais. Pois se não há registo de reclamações...
O presidente da Câmara de Oeiras tem muita lata, mas em lata não está sozinho. Seis municípios minhotos não foram assaltados pela mais leve das dúvidas quando designaram para presidir à administração de uma empresa intermunicipal Domingos Névoa, "homem forte" da Bragaparques, recentemente condenado por tentativa de corrupção de um vereador da Câmara de Lisboa. Insistamos num ponto: a empresa é intermunicipal. De natureza pública, portanto, mesmo que juridicamente não seja esse o seu estatuto. Como já conheço de cor os argumentos favoráveis à decisão, avalie o leitor se têm pertinência: o cargo é, ao abrigo de um acordo parassocial, ocupado rotativamente pelas entidades detentoras de capital da empresa; não é remunerado; a condenação ainda não transitou em julgado, estando um recurso a correr; trata-se - até este se ouviu! - de uma "questão pessoal", não considerada na nomeação (sobre a dita "questão pessoal", Névoa esclareceu, entretanto, que não roubou, limitou-se a "defender um negócio"). Não há aparelho de Justiça que resista a tanta lata.
Nenhum destes argumentos me comove. Um mínimo de ética seria suficiente para se sobrepor a todos eles. A nomeação é, antes de mais, uma bofetada no tribunal que condenou Névoa. E revela falta de vergonha dos autarcas envolvidos. Ou melhor: falta de decência. O que está em causa é isso mesmo, decência. Decência que, sendo pública, é por natureza mais exigente.
Na crónica da semana passada, atribuí a António Aleixo o verso de Fernando Pessoa "O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente". Não se tratou de um lapso, mas de um erro de palmatória, para o qual chamaram a atenção dois leitores atentos, a quem agradeço. Impunha-se a correcção. Aqui fica, com um pedido de desculpas aos leitores.