Elogio do dia de reflexão
A lei portuguesa manda que a campanha termine na antevéspera da eleição. Sendo hoje dia de reflexão, devemos abster-nos de fazer publicamente considerações que possam ser direta ou indiretamente relacionadas com o leque de escolhas disponíveis para os eleitores de amanhã. A maneira mais expedita de cumprir a obrigação legal é mesmo falar apenas sobre o sentido deste dia de reflexão. Por mim, estou de acordo com a sua existência. E gostaria de explicar porquê.
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Esta pausa não é, evidentemente, uma condição necessária de democraticidade. Sistemas eleitorais muito consolidados ignoram-na completamente: por exemplo, nos Estados Unidos, a campanha intensifica-se à medida que se aproxima a votação e prolonga-se até às próprias mesas de voto. Por outro lado, a interpretação do impedimento legal de fazer campanha na véspera e no dia eleitoral tem de fazer-se com medida, sem cair naqueles absurdos tipicamente burocráticos que já assaltaram o nosso burgo, como querer vigiar as mensagens políticas difundidas no Facebook e quejandos.
Hoje, as ruas continuarão a ostentar cartazes e pendões, os jornais continuarão a dar notícias, até já se sabem as projeções à boca das urnas do escrutínio holandês de anteontem, as pessoas falarão entre si de política, campanha, partidos e candidatos. Ainda bem.
O sentido do dia de reflexão não é apagar o debate eleitoral. Muito menos é, ao contrário do que alguns supõem, sempre dispostos a embarcar em populismos, "descontaminar" o quotidiano da cidade das impurezas com que supostamente o mancharia a disputa partidária. Nada disso. O sentido de haver um dia final em que as campanhas se calam, antes de os cidadãos se exprimirem, é, pelo menos a meu ver, investir formal e solenemente cada pessoa na sua condição de decisora soberana.
Condição quer dizer direito e quer dizer responsabilidade. Houve tempo para todos quantos quisessem argumentar publicamente a favor das suas ideias, propostas e candidaturas o poderem fazer de todas as formas e feitios, ocupando o espaço público - as televisões, rádios e jornais, as ruas e praças, os mercados e serviços, as empresas, escolas e coletividades, isto é, virtualmente tudo o que faz pulsar a nossa vida coletiva. Foi o tempo da campanha; quem quis ouviu, quem quis participou, quem quis ignorou, que também tem esse direito.
Mas, hoje e amanhã, é outro tempo, o tempo da escolha e da decisão. E, nesse, o protagonista não pode ser outro senão cada homem e cada mulher. Ninguém pode, ninguém deve decidir em sua vez: se vai votar, em quem vai votar, ou seja, como vai contribuir para se formar, pacífica e livremente, uma escolha coletiva.
Há quem tente definir a democracia numa só frase. Eu não consigo, preciso de várias. Democracia é garantir que todos possam ser e sentir-se representados: e que certas decisões de fundo tenham de ser obrigatoriamente tomadas pelos representantes eleitos, reunidos em assembleias legislativas. Democracia é cada um/a escolher quem deseja que o represente e, direta ou indiretamente, quem deseja que o governe, e no mesmo lance definir as orientações principais das políticas públicas. Democracia é, crucialmente, limitar todos os poderes, sem exceção, fazendo com que os vários poderes se compensem e travem uns aos outros. Democracia é um método pacífico de afastar governos. E democracia é a instituição de um mecanismo geral de controlo de baixo para cima, dando ao único soberano que admite, o povo enquanto comunidade política organizada, o dever e o poder de controlar aqueles que exercem (provisória, limitada e alternadamente) o poder apenas por seu mandato e em seu nome.
O dia de reflexão é uma excelente oportunidade para cada um de nós tomar plena consciência desta responsabilidade indeclinável. Hoje e amanhã, o problema não é "deles". Não, o problema é nosso, de cada um de nós, e nossa é, inteiramente, a responsabilidade de resolvê-lo.