Deus só é decente se o fizermos decente. Para mim isso é muito claro. Deus será exatamente do modo em que acreditarmos nele. Se não acreditarmos, Deus não será nada, apenas uma falácia na vida dos outros.
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Para o crente, lidar com as convicções dos outros conduz constantemente ao trauma. A desimportância que alguém possa conferir ao assunto parece uma eminente ofensa à sua sensibilidade. Não devia ser. O seu Deus será tanto melhor quanto mais feliz for a sua fé. A ofensa com o que sentem os outros é uma dúvida mal resolvida, uma ansiedade de patrulha que redunda num fundamentalismo irracional e não numa celebração.
Declarei a um jornal, numa enorme licença poética e por paixão, que "Elza Soares só não é Deus porque Deus não está qualificado para ser Elza Soares". Como os pais com os filhos, o Criador deve regozijar-se com a magnificência da sua criação. De todo o modo, o coro de crentes, certamente nada sabedores do que são paixões, poesias e ironia, deixou-me sobretudo duas impressões acerca do incómodo: Elza é mulher; Elza é negra.
A ideia de que o Criador tem mesmo de ser uma figura masculina, aparentada dos milenares grandes chefes, robusta como os guerreiros, sagaz como os filósofos de que a História se lembra, é uma diminuição da mulher. Deus, julgo eu, como ser que haverá de ter gerado por si mesmo todos os seres, teria de ser muito mais próximo do que é uma mãe do que daquilo que é um pai.
Elza é negra. Já todos estamos esclarecidos acerca do racismo em Portugal. O mesmo jornal que mostrou o melhor acerca do assunto (com o trabalho magnífico de Joana Gorjão Rodrigues) acabou mostrando também o pior (com o inexplicável artigo de Maria de Fátima Bonifácio - contra qual o SOS Racismo já apresentou queixa-crime); com o pior parece-me importante sobretudo deixar de ter dúvidas acerca da necessidade, da legitimidade, de criar mecanismos de proteção das comunidades historicamente oprimidas. O que o racismo de Bonifácio consegue é simplesmente provar que urge, sim, cuidar hoje da desigualdade que a História impôs a determinados grupos sociais. O racismo só acaba quando lhe terminarmos todos os efeitos. Quando houvermos criado um modo (que não pode ser o da piedadezinha) de interromper os ciclos de desfavorecimento. Não é com palmadinhas nas costas que passamos a ser muito boa gente, é com a exigência de políticas que verdadeiramente criem oportunidades de autodeterminação e acesso. As mesmas oportunidades que queremos para nós e para os nossos.
Elza Soares só não é Deus porque Deus pode ter sido inventado e Elza comprovadamente precisou de trabalhar muito para ser a magnífica que é. Se a amo, amo. Mulher e negra. Não preciso que mo lembrem. Amo-a em profunda consciência.
Escritor