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Desde a sua fundação, em 1894, a "Perfumaria e Saboaria Confiança", na cidade de Braga, foi um modelo singular de audácia e inovação pela diversidade e qualidade dos seus produtos, pelo desenho primoroso dos rótulos e embalagens, pelos perfumes, pó de arroz e sabonetes que abasteceram metade do país. Uma sofisticação inesperada que, mais tarde, iria deslumbrar Miguel Esteves Cardoso (A causa das coisas) e que Catarina Portas resgatou sob a marca, "A vida portuguesa". Mas a Fábrica Confiança foi também um exemplo raro e inspirador daquilo que hoje designamos por "responsabilidade social" das empresas: tal como relata Manuel Araújo no seu livro, "Indústrias de Braga. Notas dum jornalista" (1928), citado por Eduardo Jorge Madureira Lopes no "Diário do Minho" de 30 de setembro, entre outras regalias, a empresa assegurava assistência médica aos operários e aos seus familiares e, em caso de doença, os salários eram pagos por inteiro e por tempo indeterminado.
Em resposta ao movimento cívico que desde 2003 pugnava ingloriamente pela urgência da preservação deste património único - material e imaterial - o imóvel iria ser finalmente adquirido pela Câmara Municipal de Braga através de um processo de expropriação por utilidade pública, em 2012, com o propósito expresso de proceder à sua reabilitação em conformidade com o amplo consenso alcançado quanto à sua importância e significado. Porém, decorridos seis anos, nada aconteceu e o município, preso a um atavismo ancestral que o impede de reconhecer a importância da história da cidade e o valor cultural do inestimável património que herdou, veio agora anunciar que o vai vender em hasta pública! Perante isto, subscrevi por indeclinável dever cívico ainda que com alguma tristeza, a petição pública contra a alienação da Fábrica Confiança (Braga)1 deliberada pelos órgãos do poder local, em surpreendente volte-face, e assim juntei o meu nome aos 2000 subscritores que a petição somava nessa data.
Porém, logo após o anúncio para 20 de novembro da venda em hasta pública do edifício da "Perfumaria e Saboaria Confiança", veio a Câmara de Braga promover a respetiva classificação como "imóvel de interesse municipal", mas restringindo o âmbito de proteção à preservação do telhado e de três fachadas! Em contraste com a inércia da Câmara, refere a petição, existem "entidades públicas e privadas empenhadas na salvaguarda e que em conjunto poderão iniciar um processo de recuperação do imóvel para fins culturais/sociais ao serviço de toda a comunidade", pelo que reclamam os peticionários "que se estabeleça como prioridade encontrar uma solução alternativa à alienação apressada e sem discussão pública" na ocasião especialmente oportuna em que se celebra o êxito da candidatura de Braga a Capital Europeia da Cultura.
A 23 de setembro, escrevia Eduardo Jorge Madureira Lopes no "Diário do Minho", sob o título, "Com toda a Confiança": "A qualidade das cidades também se mede pelo interesse que manifestam pela memória e pelo modo como dela cuidam e a tornam útil. Aproveitar a Confiança para iniciar um projeto ambicioso de salvaguarda e de divulgação da memória da indústria bracarense, assim homenageando também as mulheres e os homens que outrora, em múltiplas empresas, emprestaram os seus braços e o seu saber para fazer progredir a cidade, a região e o país, é um empreendimento que não merece ser desdenhado". E tem toda a razão! O valor da "Fábrica Confiança" não se reduz à sua expressão urbana ou arquitetónica. É um testemunho que merece ser compreendido, preservado e exposto como memória reconhecida e como motivação inspiradora.
1 Que pode ser assinada no seguinte endereço: http://peticaopublica.com/mobile/piew.aspx?pi=PT90589
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL