Pode ou deve ser-se intolerante com a intolerância? Não, se isso significar perseguir o intolerante ou impedi-lo à bruta de se exprimir. Sim, se com isso quiser recusar-se o relativismo. Se o intolerante racista, xenófobo, misógino, homofóbico ou religioso decide bolsar o seu ódio ou medo do outro, defendo que possa fazê-lo. Mas não situo a sua opinião no mesmo plano de qualquer outra, porque ela afronta valores básicos e fundamentais numa sociedade livre e justa.
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Ora, uma sociedade existe e sobrevive se nela for possível encontrar causas e valores comuns, princípios em que a generalidade se reconheça. Mas, não menos importante, uma sociedade é tanto mais humana e digna quanto mais for capaz de reconhecer e respeitar a diferença: seja ela religiosa, étnica, de orientação sexual ou qualquer outra.
O respeito pela diferença não pressupõe ser como o outro, partilhar a sua mundividência, adotar os seus comportamentos. Mas impõe que o diferente não seja tido como inimigo, como inferior ou como alguém que deva ser assimilado ou integrado. Por isso também, a única situação em que a "diferença" não é tolerável é aquela em que a sua afirmação promova a violação de direitos fundamentais.
Lembrei-me disto por causa de dois episódios conhecidos nos últimos dias.
O primeiro envolveu Lech Walesa, em tempos líder do sindicato polaco Solidariedade, presidente da Polónia e Prémio Nobel da Paz em 1983. O personagem, a quem quase já ninguém liga (tantos têm sido os disparates que profere), decidiu dar a conhecer o seu pensamento profundo sobre os homossexuais. "Eles têm de saber que são uma minoria e que têm de se adaptar às coisas mais pequenas", perorou. E, em resposta a pergunta provocatória sobre se os deputados homossexuais deviam sentar-se perto do muro, na última fila das bancadas parlamentares, Walesa anuiu: "Perto do muro e mesmo fora dele".
"Nós respeitamos a maioria, nós respeitamos a democracia. É a maioria que constrói a democracia e ela pertence à maioria", acrescentou, para logo continuar: "Não quero que essa minoria, com a qual não estou de acordo - mas tolero e compreendo - se manifeste nas ruas e dê a volta à cabeça dos meus filhos e dos meus netos".
Olha que bem!
Walesa descreve a democracia como "propriedade" da maioria, o que logo revela que de democracia pouco ou nada percebe. Até "aceita" que existam homossexuais: não devem é manifestar-se enquanto tais e, se por desgraça algum for eleito deputado, é bom que seja higienicamente separado dos restantes, saudáveis e normais: num gueto, portanto.
Provavelmente, Lech Walesa, Nobel da Paz (!), considerará que a homossexualidade se pega ou transmite, mais ou menos como a gripe que me tem perseguido por estes dias.
E o seu terror deve ser o de um dia andar a passear na rua, encostar-se sem o saber a um homossexual e, de repente, sentir uns impulsos esquisitos e incontroláveis. Ou, então, que um dos netos (um dos filhos, não é provável: já são entradotes) lhe apareça em casa para jantar e, algures entre a sobremesa e o café, lhe lance de forma displicente: "Olha, vovô, conheci ontem um homossexual e decidi experimentar. Mas só durante duas semanas, porque depois tenho que estudar para os exames".
O segundo episódio envolve um clube de futebol israelita, o Beitar de Jerusalém. A Direção do dito cometeu o pecado capital de contratar dois jogadores "impuros", porque muçulmanos. E os adeptos não estiveram de modas: no início de fevereiro, a coberto da noite, e como forma de protesto, alguns pegaram fogo à sede do clube, destruindo-a. Outros, ameaçaram anonimamente os incréus.
Num jogo do Beitar, um dos tais jogadores "impuros" marcou um golo ao adversário. Felizmente, a maioria dos adeptos aplaudiu. Mas outros, às centenas, levantaram-se e abandonaram o estádio. Ainda é possível este tipo de coisas no século XXI? Claro que é: a estupidez e a cobardia são uma constante da condição humana. E, sendo a intolerância estúpida e cobarde, esse é o seu terreno mais fértil. O seu ovo da serpente, para quem ainda se lembrar do filme de Ingmar Bergman.