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Penso ser insuspeito nesta matéria. Sou céptico em relação aos sistemas puramente parlamentaristas de governo, que vão aliás rareando no Mundo (por alguma razão) e, como qualquer bom pai de família, abomino alguns exemplos históricos de excessos das assembleias. Sobretudo quando estas quiseram ser, ao mesmo tempo, governo, legislador, juiz e executor.
Os males e os bens dos parlamentos estão suficientemente estudados, do Direito Constitucional à Ciência Política, da História das Instituições à Teoria Geral do Estado, da sociologia política ao jornalismo de qualidade.
Nos defeitos, aponta-se sempre a divisão, a confusão, a esterilidade dos debates, a falta de qualificação dos debatentes, a demagogia, a ociosidade, o caos, que impossibilita qualquer governo ordenado da sociedade.
Nas virtudes, para além da qualidade representativa, estão os seus poderes específicos: fiscalização, acompanhamento, petição, inquérito, feitura da ossatura jurídica do Estado, travão à injustiça, temperamento dos excessos dos governos, local nobre do direito à palavra das minorias, e das faces visíveis do povo.
Como noutras experiências humanas, a qualidade do bolo está na prova. Houve parlamentos execráveis, e parlamentos luminosos. Houve assembleias de servos, sem poderes, inactivas, manipuladas, e outras que assumiram as suas responsabilidades históricas.
Houve parlamentos que salvaram povos, e outros que os enterraram. Houve parlamentos que resistiram à tirania, e outros que foram os piores tiranos, oprimindo e matando em nome da liberdade e da igualdade.
A história do parlamento, em Portugal, é melhor do que a pintam. E pior. Tivemos as Cortes medievais, que sempre se ergueram, nos momentos cruciais, para ajudar a salvação da pátria. Tivemos as fórmulas parlamentares da Monarquia tardia, e da primeira República, com misérias e grandezas. Aí estiveram escóis de oradores, políticos, cientistas, jornalistas, intelectuais e artistas, representando o melhor da nação, e irresponsáveis tribunos, especialistas no dichote barato, no insulto, na queima de tempo, no primarismo que apela às paixões baixas, ou zomba do espírito.
Durante o Estado Novo, a Assembleia Nacional (AN), independentemente da valia e honestidade de muitos que lá se sentaram, limitou-se a um papel decorativo, ou ao mero acto de timbrar os actos do poder real. Era na Câmara Corporativa, o segundo parlamento consultivo, que se procuravam os ecos do país real, das elites alternativas, ou o verdadeiro pensamento do poder, e dos contra-poderes. No fim do chamado marcelismo, a AN, pela entrada de novas gerações, de heterodoxos, de independentes, num regime ainda sem partidos políticos (mas com "associações cívicas"), tornou-se num interessante centro de discussão, às vezes violenta e paroxística, pressentindo-se aí a mudança dos ventos.
Na terceira República, o Parlamento teve também altos e baixos. Sentou técnicos de mérito, políticos de primeira água, e os inevitáveis bonzos e caricaturas patéticas.
Numa altura em que a Assembleia da República se renova, sentando mais talentos do que os que estão no Governo, numa altura em que os parlamentares juram cortar com os excessos e vergonhas do passado, num momento em que é ali que se desenrola o crucial do drama político, numa fase em que a capacidade de vigilância dos eleitos é decisiva, parece estranho que se ergam campanhas, aliás contraditórias, sobre a instituição.
Estranho, ou, se calhar, previsível.