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Quinta-feira, registei nesta coluna a despudorada tentativa dos adeptos da saída de Inglaterra da União Europeia, de explorar a seu favor o massacre de Orlando, como se o "Brexit" os pudesse imunizar contra tais horrores. Dias depois, era a vez do lobo solitário de Leeds replicar, de uma outra trincheira do ódio, o horror da Flórida e de Paris. O referendo que hoje vai ser decidido pelos eleitores do Reino Unido está irremediavelmente marcado, qualquer que seja o resultado, pela morte de Jo Cox, a deputada trabalhista britânica e desassombrada ativista dos direitos humanos, que foi vítima do atentado terrorista que a surpreendeu em plena campanha pela permanência da Inglaterra na União Europeia, há cerca de uma semana.
Emily Ashton transcreveu para as redes sociais o trecho eloquente e comovido de um discurso recente de Jo Cox na Câmara dos Comuns - recolhido na edição online do jornal "Público" - a favor do acolhimento das crianças sírias que partilham a triste sorte das incontáveis famílias de refugiados que se confrontam com a indiferença e o cinismo impotente de tantos governantes europeus. As suas palavras transformaram-se agora em trágica premonição! "Aquelas crianças foram expostas a coisas que nenhuma criança deveria alguma vez testemunhar, e eu sei que arriscaria a minha vida e o meu corpo para resgatar os meus dois preciosos bebés daquele inferno".
Jo Cox representou em vida o mais oposto a tudo o que vem alimentando o descrédito que hoje recai, indiscriminadamente, sobre a ação política e os seus protagonistas, atacando a própria subsistência dos regimes democráticos. Num artigo de opinião publicado pelo "Guardian", Jonathan Freedland sublinhava a coerência, a generosidade, a frontalidade e a coragem exemplares da deputada assassinada e deplorava a agressividade e a intolerância que, empoladas por certa comunicação social, confundem tudo e todos num leviano desprezo pela razão e pelo espírito crítico, acordando os monstros que devoram os valores republicanos e degradam a qualidade cívica das nossas democracias.
O terrorismo é um afloramento cruel e extremo dessa monstruosidade. Se já é por demais duvidosa a sanidade mental de qualquer executante de um ato terrorista, qualquer que seja a sua articulação organizativa, o comportamento dos lobos solitários não é de todo explicável sem recurso a algum quadro de patologia psíquica. Daqui resulta a imprevisibilidade do ato e a correspondente dificuldade de o prevenir, como se demonstrou pela inutilidade da vigilância policial permanente a que os terroristas americano e francês estavam submetidos e, aparentemente, pela ausência de indícios de comportamento violento anterior do terrorista britânico. Mas parece também claro que os lobos solitários de Orlando, de Paris e de Leeds, embora profundamente perturbados pelas suas frustrações íntimas e pelos seus medos, não agiram por mera compulsão de doentios processo psicológicos.
Em Orlando e Paris, os lobos atuaram em estreita sintonia e proclamaram estrita fidelidade ao apelo do chamado "Estado Islâmico" para a sua cruzada do ódio e da vingança. Por seu turno, o lobo de Leeds assumiu-se como intérprete da violenta propaganda racista e xenófoba que transformou os refugiados no principal argumento da campanha contra a permanência da Inglaterra na União Europeia. Os três imaginaram-se instrumentos de uma causa transcendente e cada um escolheu o modo, o local e a oportunidade que se afigurava mais adequada ao cumprimento da sua tenebrosa missão. O terrorismo é aquilo que sempre foi: a expressão apocalíptica de conflitos extremos, da radicalização, do ódio, da ausência de esperança. O combate ao terrorismo só será bem sucedido se souber confrontar as suas causas.
DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL