A Constituição da República Portuguesa (CRP) estipula que os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e estabelece as diversas categorias de tribunais. Além do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, há o Supremo Tribunal de Justiça, os tribunais de primeira e de segunda instância (comarcas e relações), bem como o Supremo Tribunal Administrativo e os tribunais administrativos e fiscais. Além disso, a CRP diz que podem existir tribunais arbitrais e julgados de paz, importando, pois, saber se também são órgãos de soberania.
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Estou em crer que houve um descuido do legislador constitucional, pois não é aceitável que ele tenha querido atribuir o estatuto de órgão de soberania àquelas formas de fazer «justiça». Desde logo porque os respectivos «juízes» não dão as garantias de independência que só os juízes togados podem dar (pois são vitalícios, inamovíveis e irresponsáveis) e, portanto, dificilmente terão a isenção e a imparcialidade próprias de um verdadeiro julgador.
Em alguns casos, os juízes (árbitros) são nomeados pelas partes, o que, obviamente, significa que a sua acção vai ser orientada mais no sentido de defender os interesses das partes que os indicaram do que de servir os valores do direito e da justiça. É como incluir os advogados das partes no tribunal colectivo que irá fazer um julgamento.
As decisões arbitrais nunca poderão ser pronunciadas em nome do povo e, claro, nunca terão a dimensão de soberania própria das decisões proferidas nos verdadeiros tribunais. Elas serão sempre proferidas em nome de outros interesses, aliás, por vezes, bem pouco transparentes. A chamada «justiça» arbitral não obedece ao princípio da publicidade processual, antes é uma justiça em que predomina o secretismo e, muitas vezes, é quase clandestina. Ora, salvo as excepções previstas na lei (e só essas), a administração da justiça tem de ser pública em todo o seu trajecto processual, pois uma justiça que não seja pública é uma justiça que muito facilmente pode ser usada para fins contrários ao direito e à legalidade, incluindo os de encobrir ou legitimar juridicamente actos ou negócios ilícitos.
No caso dos julgados de paz, estamos em presença de um arremedo grotesco de tribunais, em que não se procura resolver com justiça os litígios entre as pessoas mas antes obrigá-las a fazerem as pazes, pressionando-as, em muitos casos, a renunciarem aos seus direitos.
Aliás, a grande preocupação dos seus titulares é a de afastar os advogados, procurando convencer as partes a não se representarem por mandatários da sua confiança. Nesses simulacros de justiça parece haver lugar para toda a gente menos para os advogados que são quem garante a igualdade das partes perante os julgadores. Num processo em que as partes não estejam representadas por advogados, seja em que instância for, a decisão final tenderá sempre a ser leoninamente favorável à parte económica e culturalmente mais forte. Além disso, são os advogados que verdadeiramente legitimam os tribunais como órgãos de soberania já que só eles representam aqueles em nome de quem se administra a justiça - os cidadãos. São eles também que reforçam a independência dos juízes, já que é a parcialidade dos advogados na defesa dos interesses dos seus constituintes que garante a imparcialidade do julgador.
A administração da justiça é um poder soberano do estado que só pode ser exercido por juízes togados (que representam o Direito) nos órgãos próprios que são os tribunais. Estes são também integrados por procuradores (em representação da República) e por advogados (em representação dos cidadãos). Por isso, os juízes, ao tomarem posse, deveriam prestar um juramento perante um grupo de cidadãos escolhidos segundo as regras com que são designados os jurados nos tribunais de júri. Esse juramento simbolizaria um solene compromisso (o único de um juiz) com o povo onde, afinal, reside toda a soberania. A justiça num estado de direito democrático precisa de novos símbolos e esse juramento bem poderia ser um deles. Só assim é que, verdadeiramente, se poderia dizer que a administração da justiça é uma função soberana exercida em nome do povo.