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É boa intenção, daquelas de que está o Inferno cheio. Setenta personalidades, muitas delas responsáveis pelo estado depauperado a que chegaram as contas públicas, resolveram rubricar um manifesto de fazer lacrimejar os credores do país. Objetivo: fazê-los condoerem-se ao ponto de se empurrar para as calendas as dívidas acumuladas. Também sugestionados pelo recente prefácio do "Roteiros" do presidente da República (mesmo com juros da dívida a 4% e excedente primário de 3%, só em 2035 seria possível atingir o rácio de 60% de dívida pública, limite imposto por Maastricht e pelo Pacto Orçamental), os subscritores preconizam a extensão das maturidades da dívida "para 40 ou mais anos". Claro: 50, 60, 70, ou até um século será sempre um prazo preferível na mente de gente de bem.
Assinada por cérebros alinhados quer à direita quer à esquerda, a tese expendida tem um propósito benquisto: aliviar os tormentos da vida dos portugueses. Uma folga nas obrigações a cumprir, dizem os pensantes, abre campo a um cenário de crescimento através do qual jorrará o crédito às empresas e a concomitante criação de empregos e mais bem-estar. Afinal de contas, aceite o alívio na exigência temporal dos compromissos, alinhavar-se-ia a passagem do Inferno para o Purgatório....
A tese dos 70 "manifestantes" é bem intencionada, insista-se. Mas contém pecados e omissões.
Se de uma parte das eminências mais ou menos pardas não se ouviu um único "ai" quando a coligação no Poder e o Partido Socialista foram obedientes a rubricar um Pacto Orçamental exigente, não é inocente o momento escolhido para o manifesto. Está a chegar ao fim o programa de assistência desenhado a partir da ameaça de bancarrota da primavera de 2011 e nada como sugestionar os mercados antes de 17 de maio - mesmo estando na cara que parte da Europa não se dispõe a ser fiadora de um programa cautelar e ficaremos, pois, sujeitos aos riscos de tempestade sequencial a uma saída "limpa" imposta.
O alívio proposto nos encargos de uma dívida de regularização duríssima socorre-se no manifesto do exemplo da reestruturação e mesmo perdão de dívida da Alemanha pós-II Guerra Mundial, mas não compara abissais diferenças entre a frugalidade germânica e a irresponsabilidade portuguesa, feita de eleitoralite aguda e alimentadora dos grandes grupos económicos pendurados num Estado inamovível e até ver irreformável.
O manifesto de tão insignes figuras agregadas ao histórico de vícios das últimas décadas servirá para impressionar os desatentos. Perdeu foi a oportunidade de balizar algo de essencial: como vai o país garantir, mesmo com a extensão de prazos da dívida, não incorrer nos dislates do costume - mais e mais concubinato público-privado, mais e mais rendas definhadoras da vida do país.
Uma reestruturação da dívida até pode fazer sentido, embora também afete credores nacionais, da Banca a simples cidadãos. O problema é inexistir quem garanta pôr travão a seguir às sanguessugas do costume do erário público.