O "movimento" não é de agora mas a verdade é que se está a generalizar o recurso ao emparedamento de casas de algum modo devolutas nos centros das nossas cidades e, muito em particular, no centro do Porto.
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O caminho é conhecido. A casa começa por perder todos os seus "inquilinos", passado algum tempo os sinais de ausência de vida no seu interior começam a ser evidentes, a caixilharia inicia um processo de degradação, a cobertura deixa de funcionar e, com ela, caleiras e algerozes deixam de conduzir a água pelos seus próprios caminhos, as traves e pavimentos abatem sobre o terreno, as ervas começam a crescer e quando já rompem pelas aberturas da fachada também já degradada, eis que chega uma equipa de "execução de penas" provida de tijolos ou blocos de cimento e procede ao emparedamento definitivo da casa, tapando portas e janelas.
Pergunta: que mal terá feito a cidade a este seu pequeno átomo para que, seja quem for e ainda que se trate do seu "legítimo dono", se arrogue o direito de condenar essa pequena unidade a uma das mais indignas penas que existe que é o emparedamento? Por outro lado, podemos perguntar que razões estarão na origem desta não nova mas súbita multiplicação destas condenações sumárias que em muitas ruas da cidade atingem já extensões muito razoáveis de frentes urbanas? Claro que todos teremos, certamente, uma ou várias explicações para o fenómeno.
Claro que, em muitos casos, se trata de situações juridicamente complicadas, relacionadas com heranças mal resolvidas ou simplesmente quezilentas como são, em geral, os processos de partilhas. Claro que, em muitos outros casos, se tratará duma reacção à já tradicional previsão de enormes dificuldades burocráticas inerentes ao licenciamento de obras por mais elementares que sejam. Claro que haverá, também, quem invoque as leis das rendas e dos solos e a consequente sensação de alienação definitiva do bem para que a opção aparentemente mais ajuizada seja a de esperar por melhores dias para fazer qualquer coisa. E, claro que também haverá quem o faça porque o seu único objectivo é o de um dia poder fazer "o tal negócio"! Enfim, razões não faltarão para que nada se faça, sendo que também esta situação - a de nada fazer - é a que melhor corresponde ao modo como, em geral, tratamos o nosso património seja ele de que tipo for.
Claro que nada disto justifica o acto evidentemente deliberado de passar duma situação de expectativa mais ou menos esperançada em melhores dias que, no limite, até poderia justificar o abandono provisório da casa, para uma situação de consagração do seu abate ao activo da cidade procedendo ao seu efectivo e definitivo emparedamento. É que, para além do mais, o emparedamento é ele mesmo um acto formalmente agressivo que só pode ter justificação na vontade, assim expressa, de modificar o sentido urbano e cultural que tem a simples existência duma casa numa rua duma qualquer cidade.
Ou seja: a existência duma casa corresponde ao exercício de um direito que é o "direito de construir". Este direito é concedido sob certas condições porque à custa dum bem que é de todos e que, no essencial, corresponde a um recurso escasso e finito que é o solo de que dispomos como património comum. A verdade é que a esse direito correspondem deveres que, também eles, devem ser condicionados ao bem comum. Ora, uma cidade não é um simples somatório de casas nem um espaço onde cada um possa exercer irrestritamente a sua liberdade individual como se tudo o que lá está seja absolutamente indiferente ou irrelevante. Porque, noutros momentos, nos momentos em que vêm ao de cima os direitos, não falta quem exija ser tratado como membro de pleno direito da sociedade mas à qual quis voltar as costas, fechando, para isso, a suas portas e janelas, ou seja, emparedando a "sua casa" e, simultaneamente… a própria cidade!
A situação exige medidas, rápidas e eficazes e antes que a cidade não seja mais do que uma gigantesca e inultrapassável muralha de indiferença!