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"Olha, isto para mim é como percebes, percebes?", diz o homem com nariz de Capitão Haddock para o amigo, que parecia ser sportinguista, mas não muito. "Isto aqui é só um petisco, é umas percebes", continua o homem portista, trajado com a camisola 4 do "Bicho", a menoscabar o Sporting-Braga que já corria no ecrã do café. "O prato principal ainda aí vem, é o meu portinho e hoje vou encher a barriga", diz ele a cofiar o nariz, a alardear.
O outro, que vestia uma camisa às riscas como as dos árbitros de basebol dos EUA, revirou os olhos, "é, vais, vais, vais mas é apanhar o vírus das galinhas", e abaixou-se na mesa para afagar um canito pequenito que estava entediado estacionado aos seus pés.
As mesas interiores do Café 13 de Maio, na esquina a seguir à Casa FC Porto - Dragões da Afurada, em Gaia, que estava fechada e de luz apagada - menos o néon do brasão do dragão, que esse nunca apaga, promessa feita ao eterno presidente, azul fremente, olho branco, língua a flamejar - estavam todas cheias, na esplanada também, mas lá fora ninguém ligava patavina ao jogo.
A maioria eram turistas a falar inglês, debulhavam peixinhos grelhados, comentavam os azulejos, as casinhas apertadas, a roupa a secar nas sacadas, intrigados a perscrutar de perto as percebes - "per-ce-bes", soletrava-lhes o empregado avantajado que tinha uma t-shirt a dizer nas costas "eu sou alérgico a pessoas", em inglês, "diz-se percebes, per-ce-bes, understands", repetia ele a rir-se do riso dos turistas que estavam ali encantados, a luz da rua amarela filtrada na névoa fumada do grelhador, a noite a refulgir na branda calçada branca portuguesa.
"Olha, toma lá um petisco", diz aos 19 minutos o homem da camisa de árbitro (não se diz "árbitro", diz-se "no-umpire", palavra que muito antagonicamente significa "não é um árbitro"), "toma lá", diz ele ao outro no golo do Suárez, braços no ar, um a puxar a trela e o gasganete do canito que subitamente acordou. O resto do café nem tugiu, indiferente, os empregados azafamados, o avantajado de avental a adejar, um outro na grelha a suar - este tem uma camisa do Porto e a camisa é tão justa que parece que está tatuada no torso -, mais uma rapariga, ninguém pára, a rapariga é muito bonita e muito indiferente, unhas dos pés pintadas como os capôs nítidos dos Ferraris.
Ao intervalo, o homem "no-umpire" levantou-se, largou um "até logo, a patroa chamou" e saiu lentamente com o canito a estremunhar atrás, a cara num sorriso odorante.
Não sabia ainda que ao minuto 96 ia levar um banho e um penálti gelado que o deixou encalhado no 1-1. Nesse minuto, o homem com o nariz do Haddock, que ficara sentado sozinho a desfolhar o JN dos pés à cabeça, levemente enfastiado, levantou os olhos para o ecrã, brilhou, e soltou um automático "toma!, assim é que eu gosto!", enquanto dobrava e displicentemente atirava o JN para cima da pilha de grades vermelhas de cerveja ao lado da TV. "Ah, maravilha", diz ele a esticar o braço e o comando, a levantar sete pontos a barra de som do seu jogo, o Porto-Benfica que começou no exato minuto em que o outro acabou. "Maravilha, lagartos encalhados", e tornou-se a sentar num ar ansioso, muito sério e assim se prolongou. Não sabia ainda, suspiroso, mas o seu prato empanzinou, o Porto também empatou, e no fim do teatreiro 0-0, ninguém, nem o Benfica, encalharam todos em tédio, se ficou a rir.
