Por princípio, os meus cães não passam a porta de entrada dos quartos. No primeiro dia em que chegaram a casa (foram adotados e já eram grandes) aprenderam algumas regras e essa ficou clara. Erraram à primeira, tentaram uma segunda e terceira vez, mas depois perceberam. E corre bem, exceto se... as minhas filhas os deixarem entrar... Com esta falha no sistema, passou a haver duas regras diferentes. E por vezes sentem-se perdidos...
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Os 'fiéis amigos' precisam de liderança para se sentirem bem. O programa exibido na SIC Mulher, "Encantador de cães", demonstra isso permanentemente: eles respeitam uma ordem se a compreenderem e ganharem algo com isso. É um jogo de afetos e contrapartidas. Algo que não é muito diferente da nossa vida coletiva.
Se me perguntarem qual é o principal problema do país, respondo que é esse: as pessoas respeitarem a liderança e perceberem o rumo escolhido. E foi isso que o país perdeu a 7 de setembro (com a TSU). As discussões sobre os planos do FMI são precipitadas e assentes no vazio. Nenhum plano fará a esmagadora maioria dos portugueses concretizarem uma estratégia que tem uma direção desconhecida.
Os seres humanos consideram-se a si mesmos tão superiores que muitas vezes não aceitam as implícitas regras da natureza. Tal como os cães, lobos, patos, abelhas, leões, etc., organizamo-nos através de lideranças - políticas, familiares, empresariais, religiosas, desportivas... Um Governo é um movimento de coordenação de massas assentes na confiança quanto ao rumo.
Pedro Passos Coelho perdeu a confiança coletiva, como as sondagens demonstram. Perdeu credibilidade quando confirmou os seus compadres para os lugares do costume no aparelho empresarial do Estado, perdeu decência quando manteve Miguel Relvas, e perdeu a noção da direção da viagem através do simbólico caso TSU. Ficou demonstrado a 7 de setembro que usa afinal o poder de forma instrumental para beneficiar uma oligarquia empresarial que está a destruir todas as bases de organização social, ambiental e económica. É nesse sentido que não há condições para se falar da "refundação" que ele pretende.
A questão da liderança não esconde a urgência de resposta a questões básicas. É preciso que o Estado gaste menos? É. Que os portugueses usem menos o Estado? Também. Que haja crescimento económico? Essencial. Mas isto só se pode fazer com uma equipa que mantenha o sentido de Estado, a ética política, a dignidade. Só um entristecido presidente da República não o compreende em tempo útil, da forma mais simples: chamando à responsabilidade o seu PSD. Há uma cadeia de comando externa no núcleo duro do Governo que trai a memória fundacional do PPD/PSD.
A "instabilidade política" é tão má como uma "estabilidade política" inútil. Ir aos mercados em março, maio ou setembro demonstra bem como os "mercados" são bandos à solta guiados pelos interesses dos mais fortes em cada momento. Repare-se: a nossa recessão continua a acentuar-se, pouco de estrutural mudou nas contas públicas exceto a carga fiscal superlativa e, verdadeiramente, o nosso sucesso é comprado fora. Os juros mais baixos da nossa dívida resultam essencialmente das muito largas garantias que o Banco Central Europeu passou a dar aos países em aflição - além da evidência de que as dívidas são incobráveis em ambientes recessivos prolongados.
Além disso, há algo sistematicamente esquecido entre os números de Gaspar e a realidade: uma coisa invisível chamada "motivação dos portugueses para sair da crise". A folha de Excel não produz efeitos sem o fenómeno aleatório da psicologia social, difícil de apurar pelos macroeconomistas. A natureza humana faz com que a economia seja uma ciência social sobre gestão de expectativas. De pessoas. O que ganham. O que perdem. Para onde vão. Até os nossos amigos cães, à sua escala, percebem isso. Pena: o Governo "Goldman Sachs" é demasiado racional para isso.