Pode discutir-se o tamanho do sapo e discorrer sobre a capacidade de um organismo tão vivo, plural e histórico como a Esquerda francesa, conseguir acomodar um bicho que, contranatura, permitiria que se alojasse no seu interior mais cinco anos ao ter sido tacticamente deglutido por si em segundas núpcias.
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O desafio não é nada "gourmet". Com 22% nas mãos em noite eleitoral, Jean-Luc Mélenchon não apelou directamente ao voto em Emmanuel Macron mas enfatizou, por variadas vezes, o slogan de "nem um voto para Le Pen". Repetiu a ideia há dias, o que foi encarado como um apelo velado ao voto no actual presidente ainda que, decerto, longe daquilo que podia ou deveria ter feito. Ou que talvez viesse a (ser obrigado a) fazer caso as sondagens não indicassem uma tendência forte e constante para a reeleição de Macron, no próximo domingo, com cerca de 55% dos votos.
Agora, a dois dias das eleições, é pouco provável que haja terramotos. O debate entre Macron e Le Pen não foi desastroso para a candidata de extrema-direita como o que, nas anteriores eleições presidenciais, havia penalizado uma candidata impreparada e cansada, derrotada por inerência. Apresentou, quando muito, dois candidatos que solidificaram o apelo ao seu eleitorado natural e marcaram passo na tentativa de crescer um à custa do outro, algo obviamente vantajoso para Macron no actual contexto. No subtexto e entrelinhas, a 1,5% de Le Pen na primeira volta, eis um debate onde Mélenchon poderia estar, não fosse a habitual tendência da Esquerda para a volatilização mesmo quando a extrema-direita avança como nunca. Numa segunda volta, a união das esquerdas seria decisiva em França, como aconteceu em Portugal, na eleição de Mário Soares em 1986.
Hoje, o PCP está sob fogo cruzado à custa da sua posição sobre a guerra na Ucrânia e o papel de Zelensky. Recuemos. Quando Álvaro Cunhal pediu ao eleitorado do PCP para votar em Mário Soares de forma a evitar a eleição de Freitas do Amaral nas Presidenciais de 86, fê-lo expressamente. Pediu aos comunistas para engolir sapos. "Se for preciso tapem a cara (de Soares, no boletim de voto) com uma mão e votem com a outra", afirmou Cunhal. Foi a primeira vez que Portugal precisou de uma segunda volta para eleger um presidente. Freitas do Amaral, a 4% da maioria absoluta na primeira volta, estava muito próximo da vitória. O PCP e outras esquerdas souberam de que lado estar para evitar o que, para eles, seria o pior de dois males. É claro que, ao contrário do PCP de então, a França Insubmissa de Mélenchon tem ambições de poder nas próximas eleições legislativas em Junho e isso conta. Macron nem tão-pouco é socialista. Mas pode a Esquerda crescer à custa do descontentamento da extrema-direita, engrossando-a ainda que pela omissão, permitindo que boa parte do seu eleitorado se sinta tentado a abster-se quando se luta para que não vença o incomparavelmente pior de dois males? Nunca.
*Músico e jurista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)