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Já não devia surpreender o desapego que uma certa esquerda cultiva aos princípios da tolerância e da liberdade. Entre o discurso que só proclama virtudes e o historial prático nesta matéria, é sabido que há uma longa distância nos chamados movimentos progressistas, exacerbada nos últimos anos com os excessos da agenda “woke” e a cultura de cancelamento que lhe está associada.
Ainda assim, não deixa de incomodar a forma como resvalou o coro de críticas a José Pedro Aguiar-Branco, na sequência do episódio da passada semana no Parlamento. Subitamente, um destacado e moderado social-democrata foi transformado numa espécie de protofascista encartado, devido à indisponibilidade para censurar André Ventura por um comentário pouco mais do que anedótico ou, porque não, de lhe desferir um ralhete virtuoso e paternalista, à semelhança do anterior presidente da Assembleia da República.
Acontece que Aguiar-Branco deu uma lição de democracia básica, ao dizer, com uma clareza meridiana, aquilo que qualquer político sensato, livre e tolerante deve defender: “não contem comigo para censurar opiniões. Concorde ou não com elas”. Era assim que todos deviam pensar e seria esta a atitude certa para desmontar grande parte de retórica inflamada e populista do Chega.
Ao invés, a esquerda ortodoxa - que hoje inclui uma franja alargada do PS - prefere a via autoritária, procurando impedir a existência de ideias das quais discorda ou, numa versão mais benigna, impor “limites” à liberdade de expressão - ontem nas redes sociais, hoje no Parlamento - que mais não é do que uma forma cândida de silenciar opiniões incómodas. É tentar ganhar na secretaria, aquilo que não se consegue fazer no debate das ideias. E continuar sem perceber que a insistência neste comportamento vigilante e moralista só contribui para extremar, ainda mais, o debate político e aumentar a apetência pelo voto de protesto.
Poucas semanas depois de termos celebrado os 50 anos de liberdade no nosso país, eis um exemplo sintomático de como ainda há muito caminho a percorrer. Se para mais não serviu, este incidente teve o mérito de mostrar quem verdadeiramente acredita na democracia e quem dela só faz um mero panfleto.