1. Bill e Peggy são agricultores na pequena cidade norte-americana de Sheridan, no Montana. Foram notícia por estes dias não pelo resultado do que alcançaram, mas pela dimensão daquilo que destruíram: cerca de 700 toneladas de batatas.
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O terrível impacto da pandemia na cadeia de abastecimento redundou nisto: como não tinham o que fazer às sementes, plantaram a rodos, mas depois não houve como escoar o produto. O casal ainda ofereceu o que podia às comunidades locais, só que o custo do altruísmo não era compaginável com a distorção desta história multiplicável: sem forma de encaminhar o excedente, nem ninguém que assumisse o custo, cavou-se uma enorme sepultura num terreno para esconder esta bizarria da economia de mercado. A fome a céu aberto ficou depositada num buraco escuro. Enterrada pelo pragmatismo que não se comove com as desigualdades geográficas. Foi na América, mas podia ter sido noutro lugar qualquer do Mundo desenvolvido.
2. António Guterres chamou-lhe a "maior prova moral de sempre". O tom fatalista não é exacerbado quando assistimos diariamente à sobrevalorização que os países beneficiários das vacinas contra a covid fazem dos ínfimos efeitos secundários da profilaxia. Mas a guerra pela primazia já não é só entre ricos e pobres, é entre ricos e muito ricos. Só que os pobres, ou os muito pobres, os que nem ao luxo se podem dar de ter medo dos zero vírgula zero, zero qualquer coisa por cento de risco de sofrer um problema de saúde grave, estão a ficar irrecuperavelmente esquecidos. Segundo a Organização Mundial de Saúde, das 900 milhões de doses aplicadas globalmente, apenas 0,3% foram recebidas por pessoas em nações de baixos rendimentos. Guterres mostra pontaria no disparo, ainda que a pólvora seja seca. A sua grandiloquência discursiva acabará como as batatas de Bill e Peggy: enterrada num buraco escuro.
Diretor-adjunto