Em Cabul, e nas restantes "welayat", ou províncias, é preciso afagar as mentes e apagar a morte. O Afeganistão, para a comunidade internacional que se mobiliza, é assim Afaganistão e Apaganistão. As operações de polícia, de apoio à paz, de desenvolvimento, de estabilização, de teor político-militar, coexistem com episódios de combate intenso.
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No diário, o meu último dia de férias coincide com as eleições locais. Este país fascinante persegue-me desde a tenra juventude. Ainda estudante universitário, militante "contra os imperialismos", como se dizia, entrei em contacto com um grupo de resistentes anti-soviéticos, baseado na Europa. Arranjavam fundos, vontades e meios, canalizando-os para os Mujahidin, que combatiam o invasor.
Era a primavera de 1980. Meses antes, a URSS tinha enviado brigadas do 40º Exército para Cabul. A intervenção, com cem mil homens, 4 mil tanques e blindados, iniciava dez anos de ocupação, em que a União Soviética empenhou as vidas de quase 700 mil jovens.
A decisão estratégica de invadir fora complexa. A URSS viu-se em parte atraída a uma ratoeira, pela "raposa" Zbigniew Brzezinski, que planeava dar aos soviéticos uma experiência do tipo Vietname. Mas Moscovo, no seu peculiar estilo paranóico, queria sobretudo solidificar os elementos pró-soviéticos em Cabul, opondo-se à progressão da China, do Paquistão e dos elementos "instáveis" do Irão revolucionário.
Por outro lado, estávamos no auge das partidas de xadrez apocalípticas da "Guerra Fria". Lembro-me de um dos elementos dos guerrilheiros, que falava um inglês impecável, me ter perguntado se queria "partilhar da experiência" de viajar pelo desfiladeiro de Khyber, a coberto de uma "excursão hippy", ou visitar recém-formados combatentes da base de Badaber, no Paquistão, ali no mítico vale de Peshawar.
Era a altura em que o "mundo livre" e o Islão encontravam a mesma luta. E os mesmos interesses.
As tropas soviéticas dominavam as cidades, como outrora os uniformes azuis da União Americana ocupavam o Forte Apache, mas não tinham o controlo das províncias, dos campos, das montanhas.
Com menos homens, menos equipamento pesado, e menos tempo no terreno do que o Exército Vermelho, a actual ISAF, criada pela ONU, e as forças autónomas dos EUA, não conseguiram também, até hoje, esmagar a insurreição, e sobretudo acabar com o clima de violência e volatilidade, em particular no Sul.
Mas acabam aí as semelhanças. Em 1979, a URSS não agiu com qualquer mandato. Executou uma invasão clássica, a coberto de um "pedido" de um governo amigo (o "peticionário" foi, aliás, executado nas primeiras horas). A entrada americana, no fim de 2001, deu-se só com forças especiais, dos quatro ramos das forças armadas, e do departamento paramilitar (SAD/SOG) da CIA.
Deve ainda lembrar-se que tal golpe de mão só ocorreu depois do 11 de Setembro, e após o governo dos "Estudantes" (Taliban) se ter recusado a entregar as células da "Al Qaida" que, desde 1996-97, usavam o Afeganistão como centro de comando e controlo, para acções remotas, de impacte global.
Daí a observação de um concorrente ao sufrágio presente.
Antigo comandante "Talibã", diz que é preciso falar com o seu antigo grupo, mas distinguindo, precisamente, entre os elementos "nacionais", extremos ou moderados, e os "combatentes internacionalistas" (chama-lhes "estrangeiros"), que transformaram a sua pátria na sede de uma louca aventura planetária.