São, para mim, dois os principais problemas da gestão da coisa pública no nosso país: a incoerência, por um lado e a falta de transparência, por outro. Do primeiro decorre que não saímos da cepa torta e do segundo escorre um grau de impunidade que premeia a corrupção. O caso dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo são, julgo, um caso paradigmático de ambos.
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Queiram os caros leitores fazer um pequeno esforço e verificarão que de há uns anos a esta parte Portugal descobriu o mar.
Primeiro isolado, o saudoso professor Ernâni Lopes depressa ganhou voraz companhia no discurso e nos textos programáticos que todos os órgãos de soberania, universidades e agências públicas passaram a proferir sobre o taumatúrgico cluster do mar.
Escreveram-se livros brancos e agendas temáticas, estruturaram-se políticas setoriais e priorizaram-se elegibilidades.
Mas o mais interessante é que, considerando a paulatina desmontagem da nossa frota pesqueira e o incipiente conhecimento e estruturas de investigação sobre o fundo da nossa brutal plataforma continental marítima, sempre sobressaía deste esforço de investimento público o tema da construção naval.
Afinal tratava-se da única área onde Portugal ainda tinha atividade e, mais importante do que isso, tinha formado uma escola respeitada a nível europeu.
Os livros brancos e as agendas lá estão. O Sr. Presidente da República continua a oscilar entre as indústrias criativas e o cluster do mar, mas de repente a construção naval e o seu mais legítimo representante em Portugal - os ENVC - passam a ser um estorvo de que temos de nos livrar a todo o custo.
É pura e simplesmente insuportável a vacuidade do planeamento em Portugal. Quem o faz não terá consciência da realidade ou quem manda não quererá saber de quem estuda.
Aqui chegados, a pergunta a fazer, do meu ponto de vista, não é se se deve ou não "vender" os ENVC. A pergunta a fazer é: por que é que uma empresa com as qualificações e o percurso dos ENVC se apresenta insolvente? Que administrações a guindaram a tal situação? Que conhecimento e que responsabilidades tinha e tem quem mandou e quem manda no país?
É que não é preciso fazer muitas pesquisas ou ler com muita atenção tudo o que se escreve sobre o caso para se perceber que se cometeram muitos erros e que ninguém aparentemente por eles se responsabiliza.
Por exemplo, ouvi alguém da empresa dizer que existem armazéns cheios de material para a construção de navios. A pergunta é: quem comprou? por intermédio de quem? com que prazo de pagamento? com base em que adjudicações firmes?
Também li algures que apesar da reputada verticalização dos estaleiros, ou seja de a empresa ser capaz de projetar, construir e reparar, já há muito se não fazem projetos dentro de portas. Será verdade? Porquê?
A ser verdade, não é de admirar que haja agora dúvidas sobre a atualização técnica e profissional dos quadros da empresa. Para já não falar dos cerca de dois anos em que se entretêm, por força das circunstâncias, a jogar cartas, a ler ou a varrer o jardim.
Depois salta aos olhos o caso do ferry Atlântida. Sempre me impressionou a vaga justificação oficial para a sua rejeição pelo Governo Regional dos Açores. Mais uma vez li que teria sido por conta de um desacerto de um nó na velocidade do navio.
Que fosse! Mas então não existe um mercado internacional fervilhante de ferries onde se pudesse pôr à venda?
A não ser que tivesse falha mais grave. Não é obrigatório perceber bem isto? Pus-me à procura das características do navio e fiquei baralhada. Na ficha técnica aparentemente oficial, o navio era dado como muito inovador porque pela primeira vez comportaria o embarque de camiões e até TIR para além de autocarros e carros ligeiros.
Em documentos (na Internet) mais recentes já só se fala em carros ligeiros e vans.
Se for assim, aconteceu alguma coisa grave com o projeto (terá sido projetado dentro de portas?) que afetou irremediavelmente a funcionalidade e a utilidade do navio.
Tenho consciência do grau de especulação implícita numa reflexão feita a partir de uma pesquisa apesar de tudo superficial.
Mas o ponto é exatamente este: não devia precisar de pesquisar porque os responsáveis do meu país deviam, desde o princípio, ter a resposta na ponta da língua.