A frase que mais tenho ouvido, nas últimas semanas, logo a seguir à campeã "temos de achatar a curva", é esta: "éramos felizes e não sabíamos".
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Não sabiam? A sério? Mas nem sequer desconfiavam? Parecem aquelas mulheres (ou homens) que têm debaixo do seu nariz todas as evidências de que o cônjuge os trai, mas nunca lhes cheira a esturro. Pelos vistos os portugueses têm este problema de olfacto também, neste caso não conseguem farejar felicidade. Não quero agora ser daquelas pessoas irritantes que, depois do leite derramado, e enquanto os outros choram, alardeiam "eu avisei!". Até porque estaria a mentir. Eu não vos avisei. Desculpem. Sempre pensei que soubessem. Parecia-me tão óbvio que vocês eram felizes que não me passou pela cabeça que não tivessem notado. Malta que vive num país como Portugal, com céu azul boa parte do ano, excelente pão e queijo, bom presunto, magnífico vinho, um paraíso em termos de segurança (a não ser na cabeça do André Ventura e de alguns comentadores de crime da TV), malta com um bom emprego, uma família daquelas que, sim senhora, é muito chata e disfuncional como todas, mas até é simpática, e com uma saúde que não sendo de ferro nunca teve problemas maiores que uma apendicite ou um pé torcido, nunca tinha dado conta de que não era miseravelmente infeliz?! Aliás, deixem-me mandar fora este pretérito imperfeito. Nós não éramos infelizes e também não o somos no presente do indicativo. Podemos ser mais neuróticos, mais aborrecidos, mais difíceis de aturar. Mas, se continuamos a viver no mesmo país, a ver o mesmo sol, ainda que da varanda, a comer o mesmo queijo e a beber o mesmo vinho, mesmo quando a encomenda demora quinze dias a chegar, na companhia da mesma família, e se nem eles nem nós fomos acometidos por esta abominável doença, que razão temos para apregoar aos sete ventos que "éramos felizes", pressupondo assim que já não somos? Só por estarmos fechados em casa? Por estarmos arrependidos de não termos comprado aquela moradia com jardim, em Sassoeiros, que chegámos a visitar em 2016? Só porque tivemos de desmarcar todas as viagens, compromissos, espetáculos, planos que tínhamos para os próximos tempos? Vou mais longe: porque vamos perder muito dinheiro e ter problemas no trabalho (ou na falta dele)? Porque vamos perder muitas coisas que nos custaram a conquistar? Não será, ainda assim, um insulto para outras partes do Mundo, ouvir tantos portugueses a dizer que já não são felizes, e que nem sequer se aperceberam quando, durante largos anos, foram? O que vale é que na Síria estão muito ocupados com outras coisas e não têm vagar para ler os nossos posts de Facebook. É claro que haverá portugueses, empresas, famílias inteiras, para quem isto é de facto um drama, daqueles que justificam inteiramente que se alegue infelicidade. Eu refiro-me a todos os outros. Citando o grande pensador Octávio Machado "vocês sabem do que estou a falar". Os que reclamam apenas porque a realidade os obriga a estar em casa. Assim de repente lembro-me de vários sítios piores para se estar fechado: na prisão, no hospital, na casa de outra pessoa, que nos tenha sequestrado na cave... Este é um método que eu utilizo muito. Com o seu quê de tétrico, talvez, mas funciona: para relativizar, penso em situações piores que a minha, que a nossa. E isso faz-me sentir melhor. Provavelmente não ajuda a resolver nada, mas ajuda a que, enquanto está tudo na mesma, não fiquemos tão desesperados. Um exemplo prático: sentem que engordaram nesta quarentena? O botão das calças já só aperta com esforço hercúleo? Têm duas hipóteses: ou vão expiar a dor espiando instagrams de estrelas do fitness, ou veem um documentário sobre obesos americanos e ficam imediatamente a pensar "não estou assim tão mal, vou fazer uma tosta". Raciocínios como: "a minha mulher está um bocado insuportável nesta quarentena... mas era pior se ela fosse a Rosa Grilo", podem ajudar a controlar os nervos. Acredito que não sou a única a usar esta manobra sinistra para conseguir relativizar e aliviar o stress. Só isso explica os números de audiência da CMTV. Estão a ter um dia mau? Liguem a televisão, vejam que um vizinho foi morto à sacholada por outro, na sequência de um jogo de dominó, e vão ver como ficam a sentir-se, por um lado, melhor, e por outro, ridículos, porque estavam chateados com uma reunião que correu mal, é certo, mas em que ninguém sacou de nenhum tipo de enxada para resolver o problema à força. Se isto é uma espécie de autoajuda retorcida? Talvez. É o meu pequeno contributo para que passem este isolamento ligeiramente melhor.
*Humorista