Brutalidade policial, selvajaria popular, uma tensão social alimentada por duas pragas que correm em paralelo - a covid e o racismo - e, na Casa Branca, a atirar benzeno para cima desta fogueira bíblica, Donald Trump, o presidente-agitador.
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Há múltiplas Américas dentro dos Estados Unidos, mas a mais poderosa economia do globo vive uma das mais complexas crises da sua história recente no pior dos momentos políticos. Quando as manchetes dos jornais projetavam mais de 100 mil mortes resultantes da pandemia, quando o país se debatia, impotente, com o destino insípido de 40 milhões de desempregados, Trump comprava uma guerra pela liberdade de expressão com o Twitter, seu habitat natural e palanque preferencial. Quando o fogo da exaltação nas ruas se erguia bem para lá dos muros territoriais da América, como resposta à morte bárbara de George Floyd, cidadão afro-americano asfixiado por um polícia com um joelho no pescoço, Trump voltava ao Twitter (não volta sempre?) para ameaçar os "bandidos" com balas, varrendo os pilhadores e os manifestantes pela mesma bitola justiceira. Os dias de fúria da América são também os dias de incúria da América. Um portento que não soube reagir à pandemia e que, como resultado, escancarou ao Mundo aquilo que está sempre a tentar esconder: que a terra dos sonhos e das oportunidades é, na verdade, uma nação demasiado desigual, em que os mais frágeis são entregues à sua sorte.
Faltam cinco meses para as eleições presidenciais. É muito tempo para concluir o que quer que seja sobre as lições que o eleitorado vai tirar de mais esta página negra na história do mandato de Donald Trump. A voz de que a América precisava, na leitura sempre perene que podemos fazer a partir de uma Europa que também carrega as suas cruzes, não era garantidamente esta, a de um presidente-caricatura. Mas já todos aprendemos que não se deve menosprezar a força e capacidade de sobrevivência de Trump. Porque ele se alimenta da glória e do desastre com a mesma voracidade. Aos milhares de vozes que agora clamam por justiça e igualdade nas ruas de um colosso em alvoroço falta uma bandeira política alternativa. Infelizmente, não é em Joe Biden nem no Partido Democrata que ela está escondida. E o processo de autodestruição completa de Trump ainda pode levar anos a consumar-se. Na pior das hipóteses, mais um mandato.
* Diretor-adjunto