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Passaram uns dias, mas continua a ser difícil dormir no lugar da Ermida. Quando cai a noite a espertina é ainda maior, qualquer barulho deixa os ouvidos à escuta. É difícil o fogo regressar, pouco há mais que possa ser engolido, só que é mais forte a memória do último fim de semana, o pânico de se perder tudo, o horror de ver toda uma vida de trabalho desperdiçada, o medo de ficar ali debaixo das azinheiras e sobreiros negros como sepulcros. Passou tão pouco tempo e os sinos continuam nas cabeças dos "cavaleiros" de Ermida, gente valente que ficou quando o mais prudente era fugir. Quase ninguém o fez - as mulheres e os acamados refugiaram-se na igreja, os outros correram para o lugar do inferno onde nada se vê e tudo se pressente. Passei por lá há tão pouco tempo, pela "Pedra dos Namorados", pelos bebedouros de cavalos e vacas, animais que andam pelas ruas como se fossem família. O Largo da Igreja com homens de bengala, aparentemente inofensivos e dolentes, mas depois vi-os na televisão como se tivessem renascido das cinzas, como se tivessem sido tomados de assalto por uma juventude de que não se lembravam. Qualquer agitação os desperta. Se colássemos os ouvidos às suas portas, conseguiríamos escutar orações e promessas repetidas pelas mulheres e acamados que, naquelas duas noites, protegidos por Deus numa igreja de milagres, rezaram pelos que desafiaram o Diabo atravessado nas esquinas dos espigueiros.