Erosão dos valores, crise da democracia
Os valores da paz, da justiça, da igualdade e da liberdade, pilares insubstituíveis do Estado de direito e da democracia constitucional que marcaram toda uma cultura e um certo modelo de convivência, definindo um quadro de referências que, no passado, condicionava efetivamente o discurso e a ação política, enfrentam desde o fim da Guerra Fria um crescente desgaste.
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Uma tendência que se foi acentuando, sobretudo, a partir dos atentados terroristas de Nova Iorque, em 2001, e do regime de exceção então decretado nos Estados Unidos da América pela administração de George W. Bush - o Patriot Act - que se mantém em vigor até hoje.
Nos EUA, embora o presidente Obama, eleito pele primeira vez em 2008, tenha procurado contrariar esta tendência, inscrevendo na ordem do dia a universalidade dos cuidados de saúde ou a limitação dos privilégios fiscais dos mais ricos, na tentativa de diminuir as desigualdades sociais, a verdade é que não conseguiu ainda encerrar a prisão de Guantánamo - uma promessa por cumprir desde o início do primeiro mandato! - nem preservou a liberdade das comunicações e o direito à privacidade, contra as violações sistemáticas perpetradas pela Agência de Segurança Nacional (NSA) e os serviços de espionagem. Por outro lado, na política externa, em contrapartida de outros meios mais caros e aparatosos, cresceu o recurso aos "drones" e aos homicídios seletivos.
A Europa enfrentou a crise financeira internacional de 2007/8, no plano económico, com uma união monetária inacabada, e no plano político, com o Pacto Orçamental. Os resultados, além da catástrofe social que afetou sobretudo os povos da periferia, traduziram-se numa violenta investida contra os direitos sociais outrora garantidos pelas constituições dos estados-membros e pela Carta dos Direitos Fundamentais inscrita, em vão, no Tratado de Lisboa. Os constrangimentos invocados pelas políticas de austeridade - os poderes fácticos da "vontade dos mercados" blindados pela negação de alternativas políticas - alimentaram a predisposição para uma aceitação indiscriminada de todas as arbitrariedades que seria impensável segundo os padrões de decência cívica que antes se encaravam como definitivas aquisições civilizacionais.
As esperanças criadas pelo célebre discurso de Obama, em 2009, no Cairo, transformaram-se em retórica vã. A Primavera Árabe afogou-se em sangue na Síria e apenas se mantém viva na Tunísia, depois do esmagamento por um golpe militar da breve e controversa experiência democrática no Egito. Na Ucrânia, com a bênção do Ocidente, outro Governo também legitimado pelo voto popular acabou por cair e, na Venezuela, está já em curso um projeto semelhante. Na própria União Europeia, princípios elementares do Estado de direito são impunemente violados pelo Governo da Hungria. Nas eleições autárquicas francesas, cresce a extrema-Direita que já frequenta os governos de outros estados-membros. Em Portugal, a maioria que suporta o Governo aprovou um referendo, em matéria de direitos fundamentais, submissa à disciplina partidária e indiferente ao descrédito que lança sobre a instituição parlamentar.
Entre o Pacífico, onde cresce a influência chinesa, e o Atlântico, onde claudica uma Europa incapaz de salvaguardar a paz e os equilíbrios regionais com os seus vizinhos, a América ressente-se do declínio do poder hegemónico da sua economia perante o avanço dos países emergentes, enquanto os contornos de uma nova ordem multilateral permanecem obscuros. A Europa revela-se incapaz de salvaguardar os valores republicanos e humanistas que, depois da guerra, lhe granjearam um merecido prestígio internacional e agita-se agora ao rufar dos tambores da guerra, em Kiev ou Damasco.
A colonização do poder democrático pelos interesses do capital financeiro - o mito do mercado e a demonização do Estado ativamente empreendidos pela ideologia neoconservadora - com a degradação do trabalho e a vulnerabilização sistemática dos mais fracos, minaram os valores cívicos e ameaçam destruir as sociedades democráticas.. Não há recursos para suportar os encargos do Estado de direito social mas não escasseiam os meios para projetar empreendimentos militares e resgatar bancos falidos.