De vez em quando, volto a "Blow Up", do Antonioni, que é um tratado sobre a perceção, a ilusão e a obsessão. Ou sobre como facilmente nos enganamos ou somos enganados, iludidos entre o irrelevante e o indispensável, obcecados num dia, desleixados sem remorsos logo a seguir.
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Produzido nos anos 60, em Londres, o filme envergonha-nos de tão previsíveis, porque está lá muito, quase tudo, do que somos coletivamente hoje. É normal saltarmos de obsessão em obsessão pública tão rapidamente quanto mudamos de camisa. É normal aceitarmos sem protesto e esquecermos sem censura os enganos, os erros ou os abusos. É normal sermos escravos de perceções adulteradas, sabemos que toda a perceção é por natureza adulterada, e pouco esforço fazemos de desconstrução. Andamos convencidos de que sabemos tudo, porque nos julgamos próximos, muito próximos, de tudo e de todos. O filme mostra que quanto mais nos aproximamos, menos conseguimos ver, mais as imagens - as novas portas da perceção - se revelam uma coleção de borrões. Sabemos tudo isto e ainda assim teimamos no acessório. Uma cena do filme: o protagonista entra numa sala cheia onde está a decorrer um concerto (dos The Yardbirds, no less). A música é elétrica, mas no público ninguém se mexe. De repente, uma guitarra é atirada do palco e a sala entra em histeria violenta porque todos querem ficar com o troféu. Ilusão coletiva. Obsessão com o secundário. Inércia face aos erros de perceção. Assim nascem os Trump.
* JORNALISTA