Corpo do artigo
A fé faz-se de partilha, cresce muitas vezes em comunidade, mas sente-se, acima de tudo, no silêncio. É aí onde conseguimos travar o ruído, onde as palavras se interrompem para nada se pronunciar que se poderá viver em plenitude a experiência da fé. Não é simples. Porque habitamos espaços densos. De comunicação, de pessoas, de objetos. É essa tirania do excesso que nos atira para um vazio. Também de fé.
Hoje e amanhã ouviremos falar muito da religião católica. O Papa Francisco chega esta sexta-feira a Fátima e o santuário mariano será nas próximas horas um lugar central para os católicos. E também para aqueles que não o são. Porque os média informativos preencherão os seus alinhamentos com a visita papal e com a canonização de Jacinta e Francisco Marto. E aí está o jornalismo a cumprir aquilo que, há uns anos, Maxwell McCombs e Donald Shaw apontavam como a principal função dos meios de Comunicação Social: dizer o que pensar, ainda que nos deixem (uma certa) liberdade para interpretar o que recebemos. Nem sempre assim é, mas atualmente ninguém acredita que os conteúdos mediáticos sejam uma espécie de agulha hipodérmica com o poder miraculoso de alterar automaticamente comportamentos. Isso não implica que não tenham efeitos sobre cada um de nós. Têm e tudo isso está amplamente estudado, principalmente nos campos das ciências da comunicação e da psicologia social. As mensagens difundidas provocam sempre impacto junto de quem as recebe. Mesmo naqueles que acreditam serem não-crentes.
Fátima será certamente muito pequena para acolher tantos peregrinos, mas eles acomodam-se sempre no meio das multidões. Também se apresentará despegada dos rígidos protocolos que acompanham vários convidados oficiais, mas eles lá descobrirão o seu lugar entre o guião minuciosamente planeado. Tudo se ajustará sem assinaláveis atropelos, porque, nestes dois dias, todas as cerimónias se centram em Francisco, um Papa que, na mensagem que nos endereçou antes de aqui chegar, se diz um pecador entre os pecadores. Gosto deste homem. Que nos recorda em permanência a sua condição terrena, comum a cada um de nós.
Neste tempo, olharei Fátima através dos média. No terreno, estão muitos jornalistas e comentadores com um longo e profundo conhecimento da religião. Seguirei alguns deles com mais atenção, sabendo que me vou comover não com os discursos produzidos, mas com aquilo que irei ver através de múltiplos ecrãs. Sentirei de modo especial a aproximação do Papa Francisco à imagem de Maria que se encontra na Capelinha das Aparições. Acompanharei o modo como Jorge Mario Bergoglio se dirigirá àqueles que estão à sua frente. É no seu sorriso aberto e na forma espontânea de acenar que me fixarei com demora. E depois procurarei reter os planos que me mostrem gente em peregrinação. Gente singular à procura de um porto de abrigo do meio de uma massa aparentemente homogénea. Gente em busca de um sentido para uma vida que corre demasiado veloz, multiplicando vias nem sempre fáceis de descodificar. Gente como eu a tentar descobrir o seu lugar numa religião por vezes demasiado petrificada para cada um se sentir par(te).
Na edição de sábado, a revista do "Expresso" publicava um longo artigo assinado por José Tolentino Mendonça e Alfredo Teixeira. Retive a última parte desse belíssimo texto que falava da nova figura do peregrino, sublinhando "a fluidez dos percursos individuais crentes a que corresponde formas de sociabilidade religiosa marcadas pela mobilidade e pelos modos de associação temporária". E se hoje há muitos que vivem "uma religiosidade estável", muitos outros atravessam períodos de "uma religiosidade modelar", próprias do crente itinerante. É para este segundo grupo que a Igreja deveria olhar com mais cuidado. Pessoas que vagueiam em busca de sentidos, muitas vezes tentando recuperar uma fé que sentem que foi esmorecendo. Esses não precisam de discursos moralistas, nem de regras impossíveis de cumprir. A maior parte das vezes, apenas necessitam de espaço e de algum silêncio para se pensarem (melhor).
* PROFESSORA ASSOCIADA COM AGREGAÇÃO DA UNIVERSIDADE DO MINHO