Por estes dias, em que andávamos todos legitimamente preocupados com cortes de salários, despedimentos, ameaças a subsídios e pensões - em resumo, com a falência do Estado social como sempre o conhecemos -, Oumou Sall Seck lançava um apelo desesperado nas páginas de um jornal norte-americano. A autarca da pequena cidade de Goundam, no Norte do Mali, alertava a comunidade internacional - e, em especial, os Estados Unidos - para a situação de "refúgio de terroristas e traficantes de droga" em que o seu país se estava progressivamente a transformar "a menos que houvesse uma intervenção do Ocidente".
Corpo do artigo
Acontece que em Washington, onde Obama ainda está a acomodar-se ao segundo mandato na Casa Branca, as preocupações do momento vão mais para a política caseira que envolve, também por lá, armas. É certo que, por bem menos do que a situação de falência do Estado que se vive atualmente no Mali, as forças norte-americanas já protagonizaram outras intervenções (há quem lhes chame invasões) de legitimidade duvidosa. Desta vez, os ecos desesperados de Sall Seck não foram ouvidos na América, mas antes em Paris, onde François Hollande deu ordem, no final desta semana, para o avanço de uma operação militar. Objetivo: travar a ofensiva da falaciosa "guerra santa" dos rebeldes islamistas. Uma guerra canalha feita à custa de roubos, pilhagens, violações e carnificinas. Ou seja, tudo menos sagrada. Mais preocupadas com os cacos resultantes da primavera árabe e com o que dela ainda se tenta construir na Líbia, Egito e, claro, na Síria, a comunidade internacional e as Nações Unidas deixaram que o Mali chegasse ao ponto de quase não retorno em que se encontra hoje. Um povo milenar está privado da sua liberdade. Monumentos património da Humanidade, de todos nós, estão a ser demolidos ou seriamente danificados a um grau mais do que comparável aos Budas do Vale de Bamyan, no Afeganistão. A harmonia, como bem relembra Oumou Sall Seck, em que viviam etnias tão diferentes como os Tuareg ou os Bambara, foi desfeita pelos criminosos de grupos rebeldes encabeçados pelos "Ansar Dine" (Defensores da Fé). Com eles a dominar parte do território, o Mali é hoje um viveiro de homicidas, narcotraficantes e um enorme campo de treino de terroristas com ligações mais ou menos claras à al-Qaeda. E a hipótese de contágio aos países da região é real. Em alguns, de resto, vivem-se já há muito situações similares e a Guiné-Bissau é disso um triste e preocupante exemplo para todos nós.
De Paris espera-se agora que cumpra o prometido por Hollande: que os militares franceses fiquem no país "o tempo que for preciso". Depois disto, talvez se cumpra o desejo de Sall Seck. A recuperação do território por Bamako, a realização de eleições livres, credíveis e transparentes. Em suma, o restabelecimento de uma sociedade coesa, livre e pujante. E com os sonhos que também nós um dia, em 1974, tivemos. Por muito que estejam hoje ameaçados.